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Café: extra-forte

Quem me conhece um pouquinho sabe que eu evito, como o diabo foge da cruz ou o vampiro da luz, filmes de drama, especialmente os que envolvam doenças. Meu pobre coração não aguenta, sofro demais, provavelmente por ter visto os dramas dos anos 90 que minha mãe me obrigava. Talvez até já tenha comentado sobre isso por aqui, mas hoje, justamente, me aconteceu isso, estando sozinha e quase sem perceber. Não me arrependi.


Robert Downey Jr., esse imenso ator que muita gente conhece, é filho de um diretor de cinema independente, Robert Downey Sr.. Acompanhando a idade avançada do pai e suas questões de saúde, Jr., resolve fazer filme com e sobre o Sr., em uma combinação de olhares dos dois artistas.

Fui pega de surpresa, vi o teaser na Netflix, é leve e tem um humor gostoso que me tomou de vez, nem li a sinopse. Ao mesmo tempo, ele traz um dos grandes temas que gosto de ler, ver, conhecer, conviver: a família. Documentários sobre famílias ou pessoas no contexto familiar podem parecer egocêntricos, mas há algo que sempre nos aproxima deles. Acredito que sejam as excentricidades, as experiências de vida, as histórias das famílias e, acho que mais do que tudo, essa intimidade e ternura genuínas que costumam abraçar obras do gênero. Neste caso, um filme de um grande ator sobre um grande diretor, de início, pode parecer distante de nossa realidade, mas é muito mais próximo de nós do que imaginaríamos.

Aqui vemos Robert Downey Sr., o diretor de comédias underground, um artista que eu não conhecia e que vou buscar seus filmes. Os trechos deles aparecem e contêm um humor ácido, crítico e, ao mesmo tempo, inocente que percorre a família, o mesmo que me pegou no teaser. Vemos o interesse e intenção de Robert Downey Jr. em se aproximar ainda mais do pai, com o carinho, a paciência e muito amor, enquanto se mostra como filho e também pai ao trazer seu filho para a câmera. É possível ver também, como um corte, uma tentativa de evitar expressões maiores de dor pela perda iminente, ainda que não tenha se imiscuído delas. Ele trouxe o sentimento na forma de nostalgia e em reflexões leves e que cabem a todos nós e, talvez por isso, o diretor que os acompanhou tenha escolhido o preto-e-branco na fotografia.


À medida que o filme avançava, eu ficava dividida entre estar amando assistí-lo e sofrer ao já prever um pouco o final, como se fizesse parte daquela narrativa. Esse é o grande trunfo das boas histórias, elas nos transportam e nos fazem viver outros mundos, pessoas, experiências. Fiquei presa, talvez pela empatia e pela certeza de que todos teremos um fim, como os próprios filmes. 

O fato é: Robert Downey Jr. traz uma obra leve, terna e com muita vida, como se o próprio ator quisesse revisitar partes dele no futuro, rememorando a história de seu pai e de seu filho naquele período, como um acalento. Além da questão íntima e familiar, o filme nos enriquece mostrando a grandiosidade de uma cinematografia que poucos conhecem, mas cujas referências e influências se veem nos filmes de estúdio. Não é um filme sobre cinema, mas, nesta família, ele está em todo lugar, tentando dar conta de partes de uma vida infinita, com suas tragédias e comédias e nos estimulando a conhecer mais sobre as obras destes extraordinários homens.

Uma lindeza para fechar esse fim de semana.

***

O Café está em constante e parcimoniosa atualização. Em breve, volto com novidades. Para contribuir e deixar este lugar ainda mais aconchegante, dá uma passada no buy me a coffee. Por muito pouco, se faz muita diferença ;)
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Chegamos ao final da série 1899, cujo início comentei no post anterior. Agora, além de falar sobre a produção, surgiu uma polêmica para discutirmos: a denúncia de um suposto plágio da obra de uma autora brasileira, Mary Cagnin, que escreveu Black Silence, um quadrinho que apresenta similaridades com a produção da Netflix. E sim, parece improvável, mas não é impossível de acontecer.

poster-1899-netflix

Antes de entrarmos na polêmica, vamos por partes. A série de fato é muito boa. A ideia aqui não é trazer spoilers, mas dar uma ideia do todo, respondendo à pergunta de sempre: vale a pena assistir? Sim, vale. A série é menos sombria do que Dark, o roteiro tem algumas barrigas - cenas que poderiam ser encurtadas, momentos da narrativa que alongam os episódios e não são fundamentais - mas, suas reviravoltas a partir do 4 episódio são interessantes. Quem não leu nada sobre a série (recomendo que siga assim), não consegue vislumbrar, no início, o final que esta temporada terá. 

É interessante ver a construção narrativa e entender como os criadores conseguiram esticar a trama para o alcance e transformação que tem. A partir de um ponto, eu comecei a visualizar parte da ideia final da obra, sem saber ainda como seria sua conclusão e, de uma maneira, ela me lembrou Westworld. Esse é o máximo de informações que darei para garantir a surpresa do espectador. 

Para além dos spoilers, é muito bacana perceber que, como na série anterior dos mesmos criadores, aqui há também muito simbolismo. É parte da graça da série quebrarmos a cabeça para entender ou nos anteciparmos sobre os destinos dos personagens. Então trago alguns, como a pirâmide, um elemento histórico e místico importante para nossa história mundial, cuja função é dar morada 'eterna' aos antigos faraós do Egito. Em seguida, os nomes dos navios: Prometeus e Cérbero, dois personagens importantes da mitologia grega. O primeiro roubou o fogo divino para dar aos humanos e, como castigo também divino, foi amarrado a uma pedra, e todos os dias uma águia comia seu fígado, que se regenerava para um novo ataque no dia seguinte por toda a eternidade. O segundo, Cérbero, um enorme cão de 3 cabeças que guarda a entrada do reino de Hades, o reino dos mortos, de onde nenhuma alma sai e os vivos que ali adentram, são despedaçados em seguida. Além disso, tem essa entrada de sonhos / realidades paralelas, que se remete tanto à física dos buracos de minhoca quanto às interpretações de sonhos da psicanálise - ou seja - tem muita diversão para quem gosta de enigmas de todo tipo.

O enorme e ótimo elenco de 1899
O fato é: os atores e a trama se sustentam até o fim, mas eu esperava - e isso é pessoal - que fossem aparecer mais referências ao século XIX como pontuei no texto anterior. É o penúltimo ano do século, de um século com tantas transformações em diversas áreas. 1899 funciona mais como um cenário do que como um motivo real para o ser título da obra. Pelo menos, nesta primeira temporada é o que dá a entender. Caso encontrem outros motivos que tragam mais relevância ao ano na série, mandem pra mim por aqui ou no instagram do Café: extra-forte pra gente discutir.

Agora sim, falaremos sobre o plágio. O mundo recebeu com surpresa a afirmação da autora brasileira Mary Cagnin em sua conta no twitter, acusando os criadores de 1899 de plágio. O plágio, como sabemos, é a reprodução total ou parcial de um conteúdo produzido de uma pessoa por outra sem sua autorização e/ou conhecimento. Ela afirma que há na série vários elementos e ideias iguais ou muito similares aos de sua criação, citando a pirâmide, escritas em código e outros. 

mary-cagnin-black-silence
Mary Cagnin
Acabei de ler Black Silence - a autora disponibilizou a obra para o público, objeto do suposto plágio - vou indicar sempre que é suposto porque não é da minha competência dar esse atestado - e os elementos que ela cita, em parte, estão lá mesmo. Não sabemos se é uma estranha coincidência (pirâmides são referências muito usadas em ficção científica, assim como escritas em código), como também vale afirmar que as narrativas das duas obras são bem diferentes. O roteirista e criador da série, Baran Bo Odar se manifestou, indicando a impossibilidade do plágio em sua conta no instagram e disse ter tentado contato com a autora brasileira para que se entendessem.

A polêmica funcionou como um chamariz para as duas obras, que agora entrarão com mais uma camada no crivo do público, que se tornará o avaliador da suposta cópia. Cabe aos advogados especializados em direitos autorais essa matemática sensível, mas, da forma como foi posta a questão, me pareceu que o plágio seria mais escancarado, como o de estudantes que copiam textos de mestres, e identificamos logo de cara o problema. No caso da série e do quadrinho, alguns elementos estão lá, mas as histórias me pareceram bastante distintas de forma geral, tanto que não sei se cabe a ação. Mas, como disse anteriormente, é deixar com os especialistas.

comparações entre a série 1899 e o quadrinho Black Silence.
1899 à esquerda, Black Silence à direita.
De todo jeito, vamos aguardar o provável e ótimo retorno financeiro desta primeira temporada de 1899, aquecido não apenas pela qualidade da obra, como pela polêmica que se fez em torno dela. Casos assim acabam servindo à curiosidade do público, que quer ser parte da trama, nem que seja apenas por conhecimento, para a boa conversa na mesa do bar ou tomando um café. Acho que o plágio é uma realidade em qualquer meio e, neste caso específico, há muitas nuances a avaliar antes de se atestar algo tão grave. A série segue valendo a pena, a temporada de debates está aberta e quem quiser falar sobre simbolismos, sobre as qualidades e defeitos da obra, expectativas e interpretações com e sem spoilers, estou por aqui com meu café quentinho, esperando a visita. :)

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O Café está em constante e parcimoniosa atualização. Em breve, volto com novidades. Para contribuir e deixar este lugar ainda mais aconchegante, dá uma passada no buy me a coffee. Por muito pouco, se faz muita diferença ;)
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A nova série da Netflix, 1899, mostra já nos primeiros minutos ao que veio. Com uma construção minuciosa como a que vimos em Dark, estabelece de cara o clima do que estaremos a ver, assim como um universo à parte, que nos é, simultaneamente, estranho e familiar.

1899-netflix-serie

Quando o espectador assiste uma produção audiovisual, nem sempre se atenta à enormidade que é a transmutação de texto em imagem. Ao escrever isso, vem à mente aquela frase clássica da fotografia, de que ela vale mais do que mil palavras. No caso da construção cinematográfica, é mais realista dizer que para uma imagem - cena - se construir, precisa-se de muito mais do que mil palavras.

1899 faz isso em sua abertura. Com uma voz off (onde o narrador não aparece), vemos imagens sombrias e belas de natureza poderosa, céu e mar. A sinopse conta que esta é a história de passageiros de diferentes nacionalidades em um navio que segue da Europa para os Estados Unidos. No meio da viagem, se deparam com sinais de que outro navio, desaparecido meses atrás, está próximo e vão ao seu resgate. No texto narrado, como em um dos temas de Dark, falamos do elemento humano e da crença na ciência, sobrepondo o cérebro (pensamento e razão) à imensidão e (in)finitude do universo (mistério e caos). Na sequência, encontramos a protagonista: uma neurologista que fez algum tipo de tratamento de saúde mental à revelia antes do embarque, uma mulher de ciência que já foi tida como louca. Voltando aos minutos iniciais, o som é um elemento à parte, tão ou mais espetacular do que as imagens que absorvemos com sofreguidão: a combinação de efeitos sonoros com a qualidade da voz e da trilha, insere a tensão que descortinaremos em breve. Mais uma vez lembraremos de Dark, a série que traz a angústia como ponto forte, imensamente trabalhada no som e na fotografia. Mas, por que fazer desta forma?

poster 1899, nova série netflix.

Em 1899, nada é gratuito. A construção visual e sonora é preconizada lá atrás, nas palavras do roteiro. Ali, se visualiza a tensão, com indicações precisas sobre o que veremos e ouviremos, assim como suas metáforas. O cinema é um trabalho de criação artística coletiva e o que houver de indicações em texto, será compartilhado com as equipes que trarão ainda mais elementos criativos, darão profundidade e uma forma concreta ao que o roteirista pressupôs inicialmente. Esse conjunto de ideias se traduz em uma 'criação de clima' que suporta o universo inventado, elementos que dão contexto e plausibilidade à história que assistiremos. E nisso, os criadores de Dark, os mesmos de 1899 - por isso as menções acima - são brilhantes.

O que mais impressiona, e estamos no início da série, é a construção desse mundo e a forma como ela nos convida, imediatamente, a fazer parte dele. O mistério é a chave mestra, o clima sombrio, as apresentações de personagens dando a entender que cada um traz um problema, a adaptação de época com questões sobre medicina, filosofia, gênero e comportamento, e essa indicação, mais uma vez, de se tratar de algo que descobriremos juntos: espectadores e personagens. Em menos de meia hora do primeiro episódio, conhecemos os principais envolvidos na trama, figuras diversas e misteriosas que farão um amálgama das relações humanas dentro de um universo particular - um navio - e fantástico - o mistério do navio afundado, considerando o chamariz do sobrenatural versus a ciência, como a medicina do cérebro (que fatalmente se mostrará como um novo mistério, a mente humana) em uma protagonista desacreditada. É muita informação para pouco tempo de história, mas tudo parece fazer sentido e embarcamos nessa jornada com facilidade e questões em aberto à espera de solução.

elenco principal de 1899, série da netflix

Vamos seguir adiante com 1899, esperando desdobramentos interessantes, suspense, personagens complexos e mistérios para solucionarmos, como os grandes filmes e séries. Pensando que a série se passa no finzinho do século XIX, vale relembrar o que acontecia na época e como as revoluções em todas as áreas do conhecimento podem se fazer presentes aqui, de Darwin a Freud, de Pasteur a Dostoiévski, Marie Curie e Van Gogh, da evolução da fotografia e do nascimento do cinema. É uma produção para todos assistirem (exceto menores de 16 anos) e perceberem a riqueza de uma construção cinematográfica excepcional em muitos sentidos. Pelo menos, até agora. 

No avançar da série, volto aqui para falarmos mais sobre ela.  
Aguardem cenas dos próximos capítulos. =)

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Documentário parece um termo pesado que costumava estar associado a filme chato, como aqueles que passavam nas tardes de domingo, com bichos correndo pela África. Enquanto ainda acho que esses têm o seu valor, vim falar da outra categoria, que nos prende até mais do que um filme de ficção. Vamos conversar sobre o novo documentário da Netflix, Os Segredos de Saqqara para entender melhor este tipo de filme e porque é tão importante. E legal!

crítica do filme Os Segredos de Saqqara (2020), o novo documentário da Netflix
Segredos de Saqqara | Netflix

Acabei de assistir a Os segredos de Saqqara, o documentário mais novo da Netflix, lançado neste 2020. Ele conta a história de uma equipe de arqueólogos egípcios que estão escavando a região de Saqqara, um dos sítios arqueológicos mais antigos do mundo, pertinho do Cairo, no Egito. O que podem descobrir ali, abrirá margem para ampliar a história do Egito e, portanto, do mundo como conhecemos. Mas, aí você me pergunta: por que não fizeram uma ficção sobre essa história? Não seria melhor?

O documentário é um gênero cinematográfico?

Não. O documentário não é um gênero como a comédia, o romance, o drama. Assim como 'filme estrangeiro', 'alternativo' ou 'cinema nacional' não são gêneros. O documentário é uma forma de fazer filmes que busca assuntos pautados em fatos, em situações que estão ocorrendo ou ocorreram em nossas vidas. Essa é uma definição muito ampla e que, se formos pensar, também vale para a ficção.
 
A discussão sobre o que é documentário esbarra nas zonas cinzentas da produção audiovisual. Por isso, hoje é mais comum se tratar de filme de ficção e não-ficção. Na minha humilde opinião de não acadêmica, dá para seguir das duas maneiras. Hoje, claramente entendemos se o que estamos vendo é um documentário ou um filme de ficção. Como assim?

escavação na tumba de Wahtye em Saqqara. Documentário Os Segredos de Saqqara.
Os Segredos de Saqqara | Escavação na tumba de Wahtye 
A linguagem é outra. O documentário busca respostas, está atrás de entender sobre um assunto, de conhecer, questionar. Os filmes de ficção partem de um assunto e elaboram uma narrativa sobre ele, um conceito fechado, para construir a história a partir dali. O documentário procura as histórias. Talvez as diferenças devam partir daí. 

Documentários relevantes | A crítica de Os Segredos de Saqqara

Vamos partir do nosso exemplo mais atual: Os segredos de Saqqara. Um filme feito no outro continente, a mais de um oceano de distância, no Egito. Sobre uma escavação arqueológica que busca resquícios da civilização local há mais de 4000 anos. Por que isso é importante para nós, brasileiros (ou humanos, que seja)?

Saber um pouco sobre uma escavação no Egito pode não ter nenhuma relação direta com a gente, se pensarmos rapidamente. Mas, considerando que o Egito é um dos berços da civilização como conhecemos hoje, criamos uma relação. Saber como as pessoas se comportavam, que ferramentas usavam, como se comunicavam, como era a ciência naquela época, contribui para criamos uma linha evolutiva de todos esses aspectos, de nós mesmos. Se pensarmos que só sabemos o que sabemos hoje, graças a pesquisadores, escavadores, arqueológos, antropólogos como estes, conseguimos imaginar assim, que em seu trabalho, eles encontram a nossa História no meio das areias e sob muita terra.  

os antropológos e arqueólogos de Saqqara
Os Segredos de Saqqara | Arqueológos e antropólogos egípcios em Saqqara
Então, a equipe de História e Ciência com seus escavadores chega a Saqqara com o objetivo de encontrar, a partir da existência das pirâmides no entorno, o que havia de civilização por ali. Com isso, o que eles buscam é puramente conhecimento. E, o mais surpreendente, é que eles encontram muito mais. Eles encontram um novo braço da História. A tumba de Saqqara tem talvez 4400 anos e uma família inteira dentro, os Wahtye. Um registro raríssimo e precioso para a nossa vida. Por terem rituais fúnebres e uma crença fértil de vida após a morte, aqueles egípcios deixaram inúmeros registros em hieróglifos - os desenhos antigos talhados nas paredes - contando parte de sua história.

Enquanto escavavam em um prazo curto - a seis semanas do Ramadã, quando perderiam a receita para manter o projeto, encontraram muito mais artefatos e História além daquela da família Wahtye. E assim, não só conhecemos um pouco mais sobre aquela civilização, como passamos a dar outra importância à busca por conhecimento destes grandes profissionais. Do escavador sem formação acadêmica, mas, com um olhar clínico e apurado ao doutor em antropologia, antropozoologia, egiptologia, arqueologia. Estão todos ali buscando aprender.

Assim, documentários são sim, importantes. Se forem como este então, são perfeitos, porque trazem as emoções das descobertas, o cronograma que nos deixa tensos à medida que o tempo vai se tornando escasso, as relações entre os colegas de trabalho, o bem comum. É um filme sobre relações humanas no fim das contas e, mesmo que não seja o nosso objeto particular de estudo, o filme nos fisga na narrativa, em uma história que não vemos ou ouvimos falar todos os dias. Desta forma, o documentário é, também, um filme de entretenimento.

Crítica de Os Segredos de Saqqara, Netflix
Os Segredos de Saqqara | A tumba de Wahtye 
E se buscamos uma análise de estrutura narrativa, encontraremos protagonistas, personagens secundários, jornadas, aventura. Os Segredos de Saqqara é um filme de revelações e a cada novo momento, ficamos abismados e quase viciados esperando a seguinte descoberta e aguardando as análises sobre o que já foi encontrado. Escavar e achar quase intacta uma tumba egípcia de 4000 anos é um presente para nós e isso fica evidente nos olhares surpresos de toda a equipe, de qualquer hierarquia ali dentro. É um filme especial.

Documentário é filme?

Essa é uma pergunta que costuma aparecer de outra maneira, como: é filme ou documentário? Quando vou ao cinema assistir um documentário, um amigo sempre comenta: ah, achei que fosse ver um filme ou ainda, documentário não é filme. Esta premissa parte da mesma da introdução. Documentário é cinema, documentário é filme. 

As formas de fazer ficção e não-ficção são análogas; ambas envolvem câmeras, equipes técnicas, arte, criatividade, roteiro, projeto, são feitos da mesma matéria. A diferença é a premissa: enquanto a ficção parte da história fechada, o documentário busca uma história para contar. 

os segredos de saqqara, egito.
Os Segredos de Saqqara | Outras descobertas do sítio
Com isso sim, Documentários são filmes, sempre - ou séries de tv, como a que esperamos que fosse, Os Segredos de Saqqara. Claramente, o filme nos deixa presos até o desfecho, com a vontade de continuar aquela expedição que encontrará mais surpresas. Este é apenas um dos grandes documentários lançados esse ano. Vale lembrar que começamos 2020 revendo os filmes do Oscar, Honeyland, For Sama, The Cave e outro dia choramos e nos alegramos com Professor Polvo e nos indignamos com One Child Nation. Ficamos atentos e tensos com O Dilema das Redes e com outro importante que acompanha a temática, expandido para a política, Privacidade Hackeada. 

Documentários são portas para uma nova perspectiva ou para ilustrar algum acontecimento. Nos trazem entusiasmo, nos fazem aprender ou relembrar alguma situação ou fato. Nos encantam com histórias brilhantes, como as que Eduardo Coutinho costumava contar. São tão cinema como qualquer ficção. Muitas vezes, são até melhores.  


Gostou do trailer? Invista nesse documentário e se gosta de não-ficção, tem um festival ótimo no país que segue online neste ano de pandemia, o É Tudo Verdade. Vale a pesquisa!

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Vamos manter o café quentinho e sempre fresco? Vem comigo!
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Um minissérie de total protagonismo feminino, ambientada nos anos 60, Estados Unidos, Guerra Fria e um jogo para amarrar tudo: xadrez. Com Anya Taylor-Joy, a menina inteligente de Fragmentado, O Gambito da Rainha é a nova aposta da Netflix, um sucesso garantido e eu posso provar.

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O Gambito da Rainha | Anya Taylor-Joy como Beth

Um bom roteiro

Quem me acompanha aqui sabe que eu insisto na premissa de que uma boa história pode ser sobre qualquer assunto. O que importa é a forma de contar, a narrativa. Em O Gambito da Rainha, temos uma trajetória clássica, digna da jornada do herói, que pode ser verificada na maior parte dos filmes americanos. Entretanto, não nasceu aí, mas nas tragédias gregas. Pelo menos, até onde encontramos registro. O fato é: a forma de contar é sempre a mesma, desde que o mundo é mundo.

A estrutura se concentra em um personagem principal que precisa vencer obstáculos na vida para vencer. Partindo daí, vai encontrar obstáculos menores, depois o maior de todos, se deparará com pessoas que lhe atrapalharão o caminho e outras que serão seu guia. Vai chegar em um ponto em que a mudança de rumo será necessária e assim, se cumprir o que for preciso, alcançará seu objetivo. É assim. Para qualquer história. Em qualquer obra, em qualquer lugar.

Aqui, Beth (Anya Taylor-Joy) é a mocinha que viveu um começo de vida difícil e encontrou no xadrez sua paixão. Ao lado dele, seu maior obstáculo: o vício em tranquilizantes e álcool. A ambiência ajuda: eram os anos finais da década de 50, de comportamentos rígidos e conservadores, então as drogas acalmavam as crianças e adultos a uma convivência harmoniosa ou morna, apagada e apática. Agora, é saber o que Beth precisa fazer para atingir seu objetivo maior. Com uma estrutura muito bem amarrada em sete episódios e sem querer contar muito, indico: a maratona é garantida.

crítica da série O Gambito da Rainha
O Gambito da Rainha | grandes personagens

Elenco experiente e personagens complexos

Com o bom roteiro e personagens bem amarrados - é importante o paralelo entre produções opostas deste 2020: esta minissérie e Modo avião, o filme de língua não-inglesa mais visto na Netflix até então. A comparação entre a construção de personagens nas duas obras, em profundidade, complexidade e, até mesmo, seleção de elenco é interessante. Enquanto naquele, passamos sem grandes intercorrências, com soluções rápidas demais para problemas que deveriam ser sérios, aqui, há um peso em cada história particular, os tornando figuras mais humanas. Assim, garantem o nosso envolvimento e passamos a acompanhar e torcer por eles, como fazíamos nas grandes novelas da Globo dos anos 90 e 2000.

Aqui, cada um está a serviço da protagonista e o mote é construtivo, temos Thomas Brodie Sangster, como um dos adversários de Beth, Marielle Heller, como sua mãe adotiva, Alma e Marcin Dorocinsky, seu maior adversário, Borgov. É uma série que nos leva para cima - um objetivo em comum com Modo avião. Ela nos faz compreender e provoca uma identificação com aquelas dificuldades - por mais díspares que sejam das nossas - vividas por Beth. Enquanto isso, seguimos esperando pelo retorno da amiga Jolene (Moses Ingram) e daquele que originou tudo, o professor de xadrez, Mr. Shaibel (Bill Camp).
 
A diversidade é garantida sob a forma da sutileza. Não é uma obra de denúncia, protesto ou crítica social, mas está tudo ali, nos lembrando que não dá mais para produzir peças mornas, sem crítica e pautadas na vida branca e hetero da classe média americana. Acabou. 

Com muita leveza, o filme marca a época em que se insere com uma boa 'embalagem': figurino, locações, direção de arte e musical seguem impecáveis. Os comportamentos acompanham, em uma tentativa de se quererem patriarcais, mas combatidos à medida da natureza humana, como a única forma possível de viver bem: buscando uma harmonia nas relações. Ao mesmo tempo, por viverem em um período de grande transformação social, é como se todos ali estivessem aprendendo, uma reeducação de valores e moral. Não suficiente, há o pano de fundo político: a Guerra Fria, que se cruza com a história dos famosos gênios enxadristas soviéticos em oposição aos americanos. Tem para todo mundo.

thomas brodie-sangster é um dos adversários e amigos de Beth, Mike.
O Gambito da Rainha | Thomas Brodie Sangster como Mike

O que é o Gambito da Rainha?

O título incomum é também do livro que foi adaptado, de Walter Tevis, de 1983. O autor faleceu um ano depois, quando já havia o interesse para adaptar a obra para o cinema. Heath Ledger também tentou e com sua morte, o projeto ficou parado. O Gambito da Rainha ou o Gambito da Dama é um movimento de abertura do xadrez. Aí vamos para o técnico: o que é uma abertura no xadrez? As aberturas ou movimentos de abertura no xadrez, são um conjunto de estratégias logo no início da partida, com uma série jogadas para conquistar o poder no centro do tabuleiro. Mais do que isso, só checando nos livros e sites sobre o assunto.

O que nos interessa aqui é entender como o título se relaciona com a obra. A Rainha está clara e o movimento para conquistar o tabuleiro acontece a duras penas. É ela quem comanda a própria história, uma criança que virou mulher à custa de muita disciplina equilibrada com descobertas e derrapadas. Com a atuação brilhante de Anya Taylor-Joy, atriz que tem se destacado e amadurecido nas produções que elege para participar, vemos o desenvolver de uma jovem à vida adulta sem amarras, mas com objetivos definidos.

Ela constroi sua estratégia à base de muito estudo, insistindo em outra máxima de que talento existe, mas não funciona como mágica. O talento é uma habilidade e, como tal, precisa ser exercitada. A prática, por sua vez, demanda disciplina e é neste contexto em meio à adolescência que acompanharemos o percurso de Beth. A protagonista faz seus movimentos de abertura para conquistar o centro, espaço masculino em que mulher alguma havia se aventurado antes. Por não haver restrições, já que não havia também precedentes, ela seguiu adiante.

O gambito da rainha, adaptação do livro de Walter Tevis
O Gambito da Rainha | Conhecimento como estratégia

Por que assistir?

Se até agora você anda não sabe porque deve assistir O Gambito da Rainha, digo um pouco mais. Cada episódio é construído com o gancho para o seguinte. Assim, a maratona é quase obrigatória e, por ter um tema que não abala nossos corações, não tem muito barulho - pelo contrário, o silêncio é solicitado - vale para quase todo mundo.

É uma série que promove a ideia do conhecimento, que busca nos estudos, na ciência, seu fim. O verdadeiro valor e tema da produção - não sei do livro, que não o li - não é o xadrez, mas a educação. O xadrez é o argumento, o objeto que funciona como ferramenta. Poderia ser um desafio de matemática, uma grande descoberta, qualquer outra coisa. A graça do xadrez é que é uma disputa, então o conhecimento é uma estratégia de vitória.

O mote de "não há outra forma de vencer que não seja através do estudo" é a graça. Como defensora da busca por conhecimento, a obra me pegou de imediato. O compartilhamento de ideias, também. O protagonismo feminino, idem. O título inusitado, que não me dizia nada, ao invés de me afastar da trama, me atraiu por curiosidade. E, para fechar, o fato de não ter atores imensos, nos faz focar mais na história do que em ver um ídolo na tela. Assim, há espaço para outros atores e para nos vermos ali, como pessoas, espectadores dos torneios, amigos dos personagens.

A minissérie vence com um argumento interessante nestes tempos em que discutimos o feminismo como uma força social, em oposição a uma disputa de poder. À medida em que encontramos uma causa comum, é importante que nos unamos por ela, independentemente de gênero e status. Assim é com o xadrez: não há adversários, mas pessoas em busca de jogar melhor, independentemente de gênero, nacionalidade, crenças, cor. Vencido este orgulho de qualquer lado, as inovações e a construção do pensamento apenas evoluem. Uma grande jogada, o Gambito da Rainha.

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Vamos tomar um cafezinho? Assim mantemos este blog maravilhoso cheio de conteúdos e atualizações =)
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Neste 2020 de pandemia, Modo avião é o filme de língua não-inglesa mais visto da Netflix. Com esse dado, resolvi assistir para entender o sucesso estrondoso de nosso cinema. A outra notícia é a de que a Globoplay superou o número de assinantes da Netflix no Brasil. Mas, o que as duas informações têm em comum?

larissa manoela e erasmo carlos juntos em modo avião, filme da netflix.
Modo avião | Larissa Manoela e Erasmo Carlos

História sem peso

Modo avião é um filme leve que carrega um elenco mediano, com destaque para Erasmo Carlos e Larissa Manoela. O primeiro todo mundo conhece, grande cantor e compositor da Jovem Guarda e fora dela, parceiro de Roberto Carlos. Erasmo tem grandes composições talvez até mais interessantes do que as do amigo, mas essa conversa é outra. Larissa Manoela é uma atriz de 19 anos que, em tempos de influenciadores digitais, faz um pouco de tudo: é cantora, influêncer, youtuber, tem produtos licenciados e grande e fiel público. O filme se aproveita do paralelo destas duas vidas e traz uma história para toda a família.

Ana (Larissa) é uma jovem influenciadora digital de São Paulo que vive do instagram. Mora na casa dos pais e ilustra bem o perfil das 'blogueirinhas' que criam a rotina de seu personagem-real para a câmera-celular. Vivem aquele dia a dia tão cronometrado para a 'produção de conteúdo', que criam a ilusão de que suas vidas são o que postam nas redes. Os pais a criticam muito superficialmente e Ana vive 'sem controle', entre o trabalho, as batidas de carro por usar celular e muita marra. Um acidente muda tudo.

Com o ocorrido, é enviada à casa do avô, Germano (Erasmo), em uma cidade pequena sem sinal de celular. Ela precisa se adaptar à nova realidade e aprender um pouco sobre a vida real sem redes. É nesse momento que os personagens se encontram e vivem sua transformação. Nenhum problema até aí, a estrutura narrativa é bem definida. O que falta é peso.

O filme corre como se tudo se resolvesse organicamente e até um acidente de carro não gera graves consequências ou reflexões. Como se dirigir com o celular não fosse coisa séria. Como se adaptação a uma vida sem celular não fosse tão dramática para uma garota que vive daquilo. O que parece ser uma 'leveza' no filme, vira uma água morna e quase sem gosto. O personagem mais crível é a mãe de Ana que, mesmo assim, parece amarrada em um roteiro fantasioso demais para ser pautado 'na vida real'. Talvez seja um deslize na dramaturgia ou a própria intenção de deixa solto, talvez precisasse de mais um tratamento de roteiro ou mais complexidade aos personagens. Ainda assim, dá para entender o sucesso e é fácil de assistir.

elenco de modo avião busca a diversidade, sem explorar a diferença.
Modo avião | elenco que busca a diversidade

Filme de língua não inglesa mais visto na Netflix

Modo avião chegou no ano da pandemia. Todo mundo em casa, muita crise de ansiedade, tédio, medo. Muita gente 'de saco cheio' e navegando na netflix e nos outros streamings em busca de filmes e séries para preencher o tempo e que não ocupem muito a mente. Nada que fosse muito dolorido, nada que trouxesse mais drama mas, pelo contrário, que viesse como algo de consumo rápido e indolor. Era preciso que algo nos tirasse, por alguns minutos, daquela avalanche de informações horríveis acerca da política, situação mundial e local, economia, saúde.

Com isso, o filme vem e é bem aceito. Todos os maiores problemas se resolvem quase como mágica. Um pouco de brasilidade, mas nada que localizasse demais o país - não é um filme 'cultural' - e, assim, ele ganha mais facilmente o mundo, como uma produção americana padrão ou um pouco como os doramas mais urbanos. Acompanhamos as produções coreanas como se fossem feitas em nossa esquina, com temas universais que não apresentam tanto a cultura local, mas focam em um padrão de vida que se encontra em quase qualquer país.

Larissa Manoela puxa o público jovem para perto, traz as meninas que são influenciadoras para a grande tela, chamam a nossa atenção com uma intenção de crítica e responsabilidade quanto ao uso das redes, sem aprofundar. Ao mesmo tempo, atrai as pessoas influenciáveis, seu público fiel que mimetiza comportamentos e é estimulado para o consumo. Esse é o pulo do gato, o tema é atual, recorrente e interessante. Todo mundo segue alguém nas redes sociais. Todo mundo é influenciado por alguém ou alguma marca e sempre há a curiosidade sobre os modos de viver do outro. A confirmação vem do próprio mercado: grande parte da seleção do elenco de filmes e programas baseia-se menos em talento e mais em seu público nas redes sociais. Larissa Manoela tem 35.7 milhões de seguidores no Instagram.

Além dos jovens usuários das redes, a questão dos influenciadores atrai também seus pais para o tema. Faz com que eles se aproximem dos usuários das redes, sejam produtores ou seguidores, para a conversa do café da manhã. Além disso, encontram seu ponto de atração: Erasmo Carlos. Sempre bem aceito, o Tremendão é um cara legal, traz a nostalgia do 'no meu tempo era assim', junto com um personagem que precisa mudar, precisa conhecer a neta e melhorar a relação com o filho. É uma segunda história que corre rápido, não é o foco do filme e se resolve com duas ou três cenas para compor. Em todo caso, fica a ideia de que é sempre bom ver Erasmo Carlos aparecendo, como uma boa e inesperada notícia, um reencontro com um amigo de longa data. 

a rotina dos influenciadores digitais em modo avião.
Modo avião | influenciador digital como modo de vida

Cultura do entretenimento

O Brasil vem remodelando sua ideia de entretenimento no audiovisual. Com a Netflix forte no país desde a sua chegada em 2011, o comportamento do consumidor mudou, do mercado também. Aqui e no mundo, vemos um público mais ativo, que demanda mais determinados tipo de produção e descarta outros, com uma personalização cada vez maior. Assim, a tv paga precisou se reestruturar e repensar seu negócio, refletindo nas produções de cinema e tv e em toda a indústria audiovisual.

A parte boa é que se verificou uma abertura de visão para a oportunidade e a diversidade. Conteúdos mais leves, como o que se faz no cinema americano, começaram a ser feitos aqui. Saímos da safra de filmes estritamente culturais, históricos, de denúncia e passamos ao lazer "sem culpa". Ao mesmo tempo, com a personalização provocada pelos algoritmos, se percebeu uma diversidade maior de gostos e como esse volume que se queria homogêneo, de público, se provou diferente, interessado em uma vasta gama de assuntos. A diversidade de público ensaia uma diversidade de produção e então começamos a ver uma abertura tanto para um elenco menos padronizado em gênero e cor, quanto para temas que ampliam nosso olhar como as temáticas feministas, de gênero, comportamento, culturas.

Neste contexto, Modo avião é tímido. Ele traz um elenco que se quer diverso com um tema relevante, mas focado no entretenimento. É importante uma ressalva: os extremos não são necessários aqui. A cultura é imbuída de entretenimento e vice versa. Um não existe sem o outro e um não é o oposto do outro. Todo produto é cultural pois re-apresenta parte de nossa cultura. A diferença é o quanto disso é efetivamente um traço que nos identifica enquanto país ou região ou se apenas reproduz um comportamento sem localização. Modo avião está na segunda opção.

Voltando ao entretenimento, o filme ganha espaço. Se não insistirmos na crítica sobre sua supeficilidade, mas pensarmos na relevância do tema e abordagem, encontramos o motivo. Ele conquistou o mercado internacional em um momento econômico difícil, mas em um período de crise propício: estamos ávidos por qualquer coisa que nos tire da realidade. Seriados de comédia, filmes históricos, documentários sobre qualquer coisa. Estamos vendo tudo. Se for sobre algo que vivemos no dia a dia - as redes - é um acerto. E então, o filme merece o alcance internacional. 

eike duarte e larissa manoela em modo avião
Modo avião | a vida de influência influencia na vida real?

A Globoplay e a Netflix

A Globoplay chegou forte. Com cinco anos no mercado, em 2020 conquistou o primeiro lugar na casa dos brasileiros. Vencer a Netflix é um marco importante, tendo em vista que estamos falando de um produto Globo, uma empresa nacional, batendo em uma imensa indústria que tomou todo o mundo. O investimento foi alto e o que fez a diferença foi o acervo - além da propaganda.

Com muita produção brasileira - basicamente tudo o que foi produzido pela Globo por décadas e o que se comprou de grandes produtoras - esse cabo de guerra tem sido puxado mais para o nosso lado. Com isso e a certeza de que essa disputa de protagonismo será longa, é possível perceber que há espaço para a produção nacional. E que, com isso, a concorrência pode estimular a qualidade e favorecer o mercado.

Com a desaceleração da pandemia - e a esperança de que a segunda onda não chegue aqui - algumas produções foram e estão sendo retomadas, em uma tentativa de reaquecer a indústria cultural. A pandemia revelou para muitos o que o crescimento de todos os streamings (e lives musicais) provou com dados e base de assinantes: sem cultura não há como viver. Imagine vivermos o isolamento social sem filmes, programas, seriados, música? Sem aquele cinema bobo e leve para passar o tempo? Sem um bom programa para ver com a família, a dois, sozinho? A produção cultural é necessária não apenas como uma realização e registro de como vivemos e somos, mas como uma forma de entreter, para promover a criatividade, sociabilidade, conforto e reflexão em nossas vidas. Hoje estamos com Modo avião, querendo nos ver mais na tela, em produções que nos idenfitiquem e que encerrem de vez aquele preconceito velho quanto ao que se cria aqui. O que veremos amanhã?

***

Vamos manter a conversa sempre viva? Me ajuda com um cafezinho? =)
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Poderia ser mais um filme sobre o fundo do mar e as maravilhas da natureza, mas o documentário Professor polvo (My octopus teacher) ultrapassa essa ideia. É um dos melhores filmes do ano e conto aqui porquê. Assista na netflix.

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Craig Foster | Professor Polvo
Craig Foster é um homem em crise sobre seu trabalho enquanto cineasta e sobre a vida que vive na costa oeste da África do Sul, no Cabo das Tormentas. Tendo passado boa parte da sua existência próximo ao mar, mantém uma relação íntima e fundamental com o oceano, que ultrapassa turismo ou passeio. O mar faz parte dele. Buscando um caminho para se reconhecer, Craig começa a mergulhar todos os dias e ali encontra um polvo, com quem passa a fazer contato. Este é o começo de nossa história.

Com uma sinopse simples, parece uma história sobre um lunático, mas a sensibilidade, conhecimentos e cuidados que o documentarista tem com a vida subaquática e selvagem supera qualquer ideia preconcebida que tenhamos. Seu preceito é simples, entrar no mar - o nosso oceano Atlântico - e acompanhar a vida daquele animal em simbiose com os demais, na floresta de algas.

Mas, o que dizer desse título? Em inglês e português, o documentário Professor Polvo é de extrema relevância. Os diretores e roteiristas Pippa Erlich (em seu filme de estreia) e James Reed (experiente cineasta em filmes do gênero) colocam a natureza em protagonismo e não o personagem humano que conta a história. Aqui, estamos entregues ao mar, ao oceano de águas claras em impressionante fotografia, de diversidade de cores e formas, muito além de nossa imaginação ou dos livros de escola. E o mais interessante: não é um documentário de denúncia.

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Craig Foster e Pippa Erlich | Professor Polvo
Considero o tópico denúncia importante, porque hoje falamos muito sobre o assunto. Abundam documentários sobre vida animal, sobre plásticos e poluição no mar - vale assistir o ótimo Oceano de Plástico - sobre tudo o que fazemos para tentar destruir o planeta (e ainda Maidentrip, a história de uma garota que decidiu velejar sozinha pelo mundo), mas a busca de Professor Polvo é a redescoberta, como se estivéssemos diante da melhor definição de vida em comunhão. A construção do filme traduz isso muito bem, quando começamos a perceber o filho de Craig Foster em cena, sendo o ponto focal por uns instantes, tendo a família como base, como se a história e relacionamento com o polvo o trouxesse para perto dos seus.

O documentário ainda é um ganho imenso para a netflix. O streaming, apesar do volume quase infinito de produções de todo o tipo, anda carente de assuntos relevantes e sensíveis, como se a prateleira de documentários, clássicos e cinema de arte tivesse desaparecido das nossas saudosas locadoras. Professor polvo é ainda, arrisco dizer, a melhor forma de branded content - talvez meus estudos recentes em marketing digital estejam me afetando mais do que eu gostaria - da natureza. Ele traz uma poesia no olhar, no trato das imagens, como se todos ali estivessem e fossem - como devem ser no dia a dia - preocupados com este ambiente tão rico e sensível. Assim, por mais que não enfatize e nem traga à pauta o tópico de preservação ambiental, ele se torna óbvio e imperativo.

Há muito o que ver e perceber aqui. A narrativa de Craig Foster nos aproxima da história, queremos viver aquele dia a dia, mergulhar naquela selva de imensas árvores de algas - vivendo muito perto do mar, nunca as tinha visto tão grandes, só chegam fragmentos na minha costa baiana - e acompanhar o mundo que conhecemos tão pouco e que nos traz tanto. Ao nos depararmos com as transformações da natureza e suas rotinas por um ano, somos tomados por aquele olhar, quase esperando que Professor polvo não seja mais um documentário, mas uma série. 

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Professor polvo | netflix
Mesmo sendo de extrema sensibilidade a história pessoal de transformação de nosso protagonista humano, é do animal que queremos saber mais. Como Craig, estamos ansiosos por saber o que acontece a cada dia que se vai ao mar, o que se passa ali, a perceber nuances, diferenças na água, no ritmo das ondas, no reencontro com os animais que já não se assustam com nossa presença. Tubarões, peixes, algas, moluscos, medusas, corais, águas-vidas, mamíferos - tudo em alta definição para deleite de nossos olhares e corações. Professor polvo dá aulas de vida, no sentido mais profundo e completo que possa existir. Imperdível e maravilhoso, o documentário está na netflix.

Assiste ao filme Professor polvo e me conta o que achou? Se gosta de dicas de filmes, séries, livros, aparece sempre por aqui, toda semana tem conteúdo novo, relevante e interessante no Café. E se quer me ajudar a mantê-lo funcionando a todo vapor, vem no buy me a coffee! Com tão pouco, já se faz muito =)
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Quem acompanha o Café, deve estar surpreso ao ver esta postagem. Apesar de minha ênfase na curadoria de filmes, séries e livros ser em cultura de forma ampla, com produções do mundo inteiro, Dorama é, de fato, uma grande novidade. Mas, o que é Dorama mesmo? E por que faz tanto sucesso?

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Seul | Coréia do Sul
Dorama é definido como qualquer produção de drama para a televisão, entendendo este 'drama' como encenação, dramatização. O dorama, não é restrito à Coréia do Sul, mas de toda a região do sudeste asiático - China e Japão também os produzem há bastante tempo. Aqui, vamos focar nas produções coreanas, país que mal conheço e já gosto muito.

O termo 'dorama' deriva da forma de falar do povo, que tem dificuldade com 'drama'. Pode parecer besteira e errado escrevermos assim, mas é como é compreendido e ninguém se ofende. Os doramas são produções de comédia romântica, dramas, suspenses e mistério, que têm foco em desenvolvimento de personagens. Assim, aqueles filmes fantasiosos, de ação e séries de robôs, por exemplo, não entram na classificação, são chamados de tokusatsu (cuja tradução literal é 'efeitos especiais'). Quem já começou a assistir ou assistiu a um dorama, entenderá este ponto. Enquanto a preocupação maior é com os personagens e menos com o desenrolar das tramas, eles tendem a nos passar a impressão de que 'demora a acontecer alguma coisa' - quando, na verdade, é apenas outra forma de contar uma história.

Para assistir a estas produções, é preciso se preparar, os seriados costumam ter episódios longos - Reply 1988 tem alguns episódios de 90min! - e neste clima de 'deixa a vida me levar'. Se você está buscando um filme ou série de consumo 'imediato', é melhor ir a outras paragens. Eu fui apresentada aos doramas por uma grande amiga que é super fã e entendi o porquê. Estas produções - especialmente as de comédia romântica ou romance - têm uma leveza e inocência que se aproximam das comédias românticas americanas dos anos 80 até meados dos anos 90. Ali, parecia que os relacionamentos não eram tão líquidos como Zygmunt Bauman proclamou em seu livro e havia ainda um período de paquera e romance, conquista e então, compromisso. 

Além da leveza das séries, há características que enfatizam as mudanças de hábitos quando entramos neste mundo. As interpretações, muitas vezes, são exageradas, como caretas de surpresa e ênfases de expressão. Há ainda aquelas explosões de gritos e sussurros altos que nos fazem rir e um ou outro momento de fantasia que nos tiram do lugar comum. O mais importante é ter o coração aberto para a diferença e, claro, entender se este tipo de produção é para você. Para mim, foi uma grata surpresa! Trago agora opções de doramas que assisti na Netflix - o streaming tem investido pesado nestas produções - para matar a sua curiosidade e entrar nesse novo mundo!

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Romance is a bonus book (2019)
A história acontece em uma editora de livros e ali, há muitas conversas sobre marketing editorial, lançamentos, ideias, livros e até café. Para mim, os melhores temas e, não suficiente, há uma história de amizade antiga que pode se transformar em romance. Para os corações sensíveis, uma delícia. Romance is a bonus book é uma ótima pedida para entrar nesse universo. Os episódios não são muito longos  - têm em torno de 60 minutos - e, como a maioria dos doramas, se encerram em uma temporada. 

Kang Dan Yi é uma redatora que está apertada de grana e não tem jeito que conseguir trabalho. Ela é separada do marido e sua filha estuda em um internato, de forma que quase não aparece na trama. Para as mulheres que engravidam e param de trabalhar um período, é um inferno retomar a vida - em qualquer parte do mundo, mas a Coréia do Sul, em particular, ainda carrega um imenso atraso social em se tratando de gênero, aceitação e emancipação da mulher. Dan Yi é teimosa e faz de tudo para conseguir um trabalho compatível com suas habilidades, não consegue e, no meio disso, começa a fazer faxina na casa do amigo Cha Eun Ho, se passando por uma diarista. No meio dos apertos e com medo da humilhação, se muda para o sótão da casa daquele e consegue um emprego na editora em que ele trabalha. Os dois passam a ter uma convivência e o resto deixo para a imaginação.

Romance is a bonus book é um dorama leve, tem uns momentos excepcionais de 'distração' e ótima construção de personagens. Um pouquinho de exagero em algumas atuações, característicos do tipo de produção que estamos vendo. Nada que aperte demais o peito, assisti no início do isolamento social e era tudo o que eu precisava naquele momento.

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Reply 1988 (2015)
Essa série é apenas maravilhosa. A gente sabe que boa parte do sucesso de produtos de comunicação e entretenimento se deve a alguns pilares de atração. A nostalgia é um dos mais usados para garantir esse alcance. Reply 1988 é sobre isso. Um grupo de amigos adolescentes na Seul das Olimpíadas de 1988, que vive na mesma rua e partilha das mesmas experiências. Como os meus amigos de adolescência, éramos e somos um grupo sólido que leva a sério essa intimidade, inclusive familiar. Com 16 episódios de aproximadamente 60 minutos - os últimos são enormes, verdade seja dita - a série traz elementos daquela década que nos aproximam da trama: fitas cassete, televisão antiga, maquiagem e penteados e até Carrossel (sim, a professora Helena também aparecia por lá!).

Reply 1988 traz essa vida do dia a dia, como se fosse uma mistura bem feita dos não problemas sérios de Dawson's Creek, com a comédia leve e cotidiana de Chaves. Sung Deok Sun, a mocinha da foto, é a narradora da história em flashback que traz a volta para o contemporâneo logo no finalzinho, como se invertêssemos a ordem narrativa de How I met your mother. Paixões adolescentes, muita comida - em todas as séries coreanas há sempra muita comida com cara boa, é impressionante - escola, melhores amigos, desafios, dificuldades, alegrias e cumplicidade. O dorama vai bem e força um pouco a barra da nostalgia no final, mas até chegar lá e sentir o peso, você já se apaixonou por todos os personagens. De verdade: todos os personagens são muito bons. A netflix ainda comprou Reply 1994 e Reply 1997, com outras tramas (não é uma continuação), mas, não cheguei lá ainda.

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My Mister (2018)
Essa alegria toda da foto não indica a seriedade da trama. Esqueça comédia romântica, romance ou qualquer coisa, aqui a coisa é séria. A gente sabe que ser mulher não é fácil em lugar nenhum, mas na Coréia do Sul, há um agravamento substancial no destrato e descaso. My Mister é um dorama sobre Lee Ji An (a cantora, compositora e atriz, IU), uma jovem mulher com uma dívida familiar nas mãos de agiotas. Seus pais já não estão vivos e ela vive e trabalha em qualquer lugar e da forma que der para pagar e sustentar a avó idosa. Sofrendo pressão do agiota - que conhece desde criança, quando todos eram inocentes e os pais é que tinham problemas - aqui tem violência contra a mulher e uma série de situações de dar muita raiva.

Ao perceber uma possível corrupção que envolve muito dinheiro dentro da empresa em que trabalha como temporária - é pior do que ser estagiário, as pessoas te destratam porque você é quase um dalit - ela pega este envelope de dinheiro e tenta resolver a vida. A grande questão é o homem que recebeu o montante e não sabia o que fazer com ele, é Park Dong Hoon (Sun-kyun Lee, o pai rico do sensacional filme coreano Parasita), honesto até o último fio de cabelo. É nessa trama intricada que os dois vão estabelecer uma relação entre a confiança e o medo.

Brilhante, bem executada, é uma trama equilibrada que dá peso e relevância também aos personagens secundários, como os irmãos de Park Dong Hoon que aparecem na foto. Se não for muito adepto ao romance, invista nesse.

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Porque essa é a minha primeira vida (2017)
A volta para a leveza você encontra aqui. Porque essa é a minha primeira vida é uma história sobre gentileza, cuidado e atenção. Estas são palavras fundamentais em qualquer tipo de relacionamento e aqui, elas seguem juntas com algumas particularidades interessantes. Ji Ho é, novamente, uma das mulheres que se dá mal na vida. Isso será uma constante nas produções coreanas atuais, devido à forte resistência e consciência femininas que vêm surgindo. Sobre esse tópico ainda há muito o que falar e  o retomarei em outro texto, mas o fato é que, até agora, todas as produções que vi, tocam no tema do gênero criticamente.

Ji Ho está sem ter onde morar e procurando uma forma de encontrar trabalho e não voltar para a cidade natal. Solteira, a última coisa que ela procura é um namorado, e enquanto busca um quarto para dividir, encontra um anúncio do apartamento de Se Hee. Por terem nomes que servem aos dois gêneros, os dois se confundem e assinam o contrato antes de se verem. É impensável que um homem e uma mulher dividam moradia sem serem casados. Atentem. 

Se Hee é uma versão melhorada de Sheldon, de The Big Bang theory, muitos sites dirão isso, mas eu acho que é mais profundo. Ele é carismático, metódico e inteligente; ela é um ser humano. Piadas à parte, os dois passam a conviver e decidem se casar para manter as aparências e resolverem os problemas dos dois: Se Hee precisa economizar para quitar o imóvel, Ji Ho precisa morar enquanto trabalha - é uma ótima e sempre explorada roteirista, que quer escrever um livro.  A série é bem gostosa e, mesmo parecendo besta com aquele clima de atuações exageradas, tem uma complexidade interessante nas histórias dos personagens. A própria ideia de se aprimorar nesta vida não esquecendo que virão outras é de uma profundidade que trazem o que pensar e discutir. As questões culturais são muito presentes, a cultura, as comidas mais uma vez, as regiões, as diferenças entre Seul e o interior, da mesma forma que o tratamento, a justiça e igualdade social buscadas. Vale o ingresso.

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Uma mesa típica coreana
Para estas e mais dicas, continue pelo Café, há sempre muito para ver e fazer por aqui. Em breve, trarei mais conteúdos sobre gênero e cinema na Coréia do Sul, foi um tema que ficou presente em mim ao assistir estas e outras séries. Aguarde cenas dos próximos capítulos.

Quer me ajudar a manter esse Café sempre atualizado? Visite o Buy me a Coffee e com muito pouco, já vai fazer uma diferença danada =)
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Como se sabe, um boa polêmica sempre faz bem ao alcance do público de um produto de entretenimento e/ou artístico. No cinema não é diferente. Lindinhas (Cuties, Mignonnes ou como aparecer na sua netflix) ganhou a curiosidade do público por aparentemente tratar da sexualização de meninas na França. Mas será que é realmente sobre isso? Vamos à crítica.

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Lindinhas, (Cuties ou Mignonnes), de Maïmoune Doucouré
É claro, a imagem que queremos ter de garotas de onze anos não é a de objetificação, de imprimir desejo e sexualidade. São crianças. Sabemos os riscos da pedofilia e conhecemos bem o tratamento dado a meninas e mulheres no mundo. Mas, analisando friamente, o que o filme traz é o comportamento 'esperado' da adolescência no 'ocidente'. Mais uma vez, com a mídia e o acesso livre às redes sociais - vale assistir ao filme o dilema das redes (2020) - as músicas e videoclipes encontram um público em formação, que não necessariamente compreende os significados daquele produto, e dança, o consome de forma indiscriminada.

O filme é mais complexo do que estas óbvias ideias e a polêmica perde validade à medida que ele avança. Lindinhas traz as diferenças culturais de um subúrbio em Paris, onde parte da população vem de ex-colônias francesas. A família de Amy, nossa protagonista, é parte disso, vindo do Senegal e suas tradições são bem marcadas, especialmente na condição da mulher - tema que o filme explora sensivelmente e, este sim, é o ponto em que devemos focar.

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Lindinhas, (Cuties ou Mignonnes), de Maïmoune Doucouré
A mãe de Amy vai ter que preparar o segundo casamento do marido. Amy e a avó terão que ficar felizes em sua presença. Nada se diz do pai que pouco aparece ou do irmão a que nada é solicitado, apenas que brinque e seja criança. Enquanto a puberdade chega à nossa heroína com os deveres de mulher aos onze anos, a Amy criança se quer adolescente e passa a se interessar em dançar com as amigas, fazer parte de um grupo, se vestir na moda - ganhar identidade.

Lindinhas constrói uma trajetória sensível de formação e uma das cenas mais marcantes envolve o vestido que ela ganha da família. Uma peça que sai do desejo ao desprezo, com a confusão e incômodo representados no olhar de Amy, quando ela descobre que deverá usá-lo no casamento do pai. É como um fantasma no armário, a representação de sua cultura familiar, uma tradição a que não se pode fugir. A tensão é firme e pertence a ela apenas, diz respeito à sua descoberta enquanto indivíduo.

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Lindinhas, (Cuties ou Mignonnes), de Maïmoune Doucouré
O filme não trata as garotas como adultas e nem pretende sexualizá-las. Não é o objetivo da diretora em seu primeiro longa, Maïmouna Doucouré. As cenas em slow motion, exibindo os rostos das meninas em poses sensuais sob uma música clássica, traduzem justamente o descompasso dos gestos com quem os pratica. É muito mais um embaralhamento de significados do que uma problematização dos corpos. Mas, alguns apostarão na minha inocência. 

Insisto e justifico: as espinhas nos rostos das crianças, os olhares fixos para a câmera, claramente direcionados para nós, são como uma provocação direta, como quem pergunta: há sensualidade aqui? A briga de meninas na saída da escola, a calcinha infantil que aparece depois que uma calça justa é puxada para baixo e as reações do público na apresentação de dança insistem em mostrar não uma promessa a olhares doentios ou intencionados, mas a marca da ingenuidade por trás da fantasia. Um jogo arriscado, especialmente quando o público é diverso e em tempos em que a polarização e polêmicas são maiores do que a reflexão e o debate. E neste caso, o filme vence.

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Lindinhas, (Cuties ou Mignonnes), de Maïmoune Doucouré
Não há porque cancelar a netflix, achei que esta política de cancelamento nas redes sociais - e, pelo visto em qualquer lugar - já havia saído de moda. Lindinhas vale o ingresso e é aposta certa no streaming. É um filme sobre a saída da infância e entrada na adolescência, novos comportamentos, menstruação, despertar tenro da percepção do outro - menos como interesse amoroso e mais como curiosidade. As brigas de meninos e meninas no primário e a vontade de saber mais sobre as diferenças físicas são evidências disso. A ausência de sexualidade é tão marcante quanto encontrar uma camisinha usada e achar que é um balão de soprar.

Talvez a ministra Damares Alves tenha se chocado - se é que viu o filme ou leu alguma crítica - com as diversas camadas que ele desperta em seu público. Talvez, não só ela, mas quem enxergou apenas a coreografia supostamente pornográfica, tenha se horrorizado com as diferenças culturais e esqueceu o que se dança e dançava em nossa infância e adolescência brasileiras. Talvez, mais uma vez, alguém tenha se intimidado com a religião ali expressada, especialmente na cena ritualística das mulheres. Para mim, pareceu algo como o que encontrei em Os mestres, os loucos (1955), do documentarista etnográfico, Jean Rouch. Naquele filme rodado em Gana, há rituais em que os personagens se manifestam para além das palavras e o mais surpreendente é ver o comportamento de seus corpos, que mimetizam funcionários da colonização francesa no país. 

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Lindinhas | o pôster novo e o censurado
Não sei se a intenção era trazer à memória esta representação em Lindinhas, mas, quando a mãe e a avó de Amy promovem um ritual com a água e o frio, 'libertam' o corpo da menina que agora se manifesta sem o aval da consciência, simulando os gestos da dança que ela praticava com as colegas. Novamente, uma cena linda, uma percepção daquela cultura de quem vem de dentro, de quem conhece as sensibilidades e intimidades dos tratos familiares e culturais. 

É uma pena, ainda que compreensível no período que vivemos, que Lindinhas seja reduzido ao tema da sexualização da infância e ainda taxado como um apelo à pedofilia. Não é disso que trata a obra, mas de identidade, diferenças culturais, descobertas na infância e adolescência. É um filme lindo e sensível que merece ser visto na íntegra para, então, trazer ao debate. Não cancela a netflix por causa dele, a empresa de streaming de filmes até pediu desculpas pelo pôster que mostra a cena das meninas na competição e fez uma nova versão, o que me parece justo e um compromisso social, de certa maneira.

Segue o trailer. Assiste ao filme e vamos conversar um pouquinho? É sempre a melhor parte, quando saímos do cinema. Para manter nossos debates em dia, vamos tomar um café? =)

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Tati Reuter Ferreira

Baiana, curadora de projetos audiovisuais, escritora e crítica de cinema. Vivo de café, livros, cinema, viagens e praia. E Pituca.


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