O prêmio Nobel de Literatura costuma me instigar a conhecer os autores ali consagrados. Alguns são historicamente conhecidos em nosso país, em sua grande maioria, homens. Minha curiosidade aumenta quando o prêmio é dado a uma mulher. Por um conceito ou preconceito, tendo a achar que as mulheres ganhadoras do Nobel de Literatura são ainda maiores do que os homens fotografados por ali, levando em conta que ultrapassaram o gênero que ocupa quase todo o cânone e historicamente por eles selecionado. De uma forma ou de outra, acabo de ler O Lugar, de Annie Ernaux, a vencedora do prêmio deste ano e é dessa descoberta que vamos falar.
Fui investigar os livros da autora e, sem ler muito sobre, peguei este O Lugar. A minha alegria veio imediatamente quando entendi o teor de suas obras. Annie fala sobre memórias, família, história. São temas que me atraem naturalmente, por eu mesma carregar essa vontade de conhecer famílias, histórias de vida, possibilidades de viver onde quer que se esteja. Quando um autor puxa esse assunto, especialmente com a qualidade literária que ela traz, é como se entrássemos naquela família, vivêssemos parte daqueles sentimentos e, mesmo se tratando de uma realidade que nos é distante de muitas maneiras, nos aproximamos dela com o que temos fundamentalmente em comum: nossa humanidade.
"Busco a figura do meu pai na maneira como as pessoas se sentam e se entediam nas salas de espera, como falam com seus filhos, como se despedem umas das outras na plataforma da estação de trem."
Em O Lugar, Annie me levou para um território assombroso, dos que eu mais temo na vida: a morte. Ela conta a história de seu pai, do homem que foi, do tempo que viveu, das lutas que batalhou, mas não num tom fúnebre, apesar de sabermos seu fim logo no início. A autora consegue se equilibrar no que parece ser uma dor, uma saudade de algo que se perdeu e de uma forma de viver, como ela coloca, da vida das 'pessoas simples'. E é aí que ela se torna magistral. As pessoas simples são seus pais, os moradores da pequena cidade onde passou a infância e adolescência, os operários, as pessoas não burguesas, as pessoas que não vivem de luxo ou envolvidas em arte, música, literatura, cinema, os intelectuais - o que para o pai de Annie, eram a mesma coisa, dada a distância entre esses mundos.
![]() |
O lugar, de Annie Ernaux |
São pessoas de costumes comuns, sem soberba, como muitos brasileiros, como os pais dos meus avós, como meus avós, em grande parte. São pessoas que batalharam para que seus filhos pudessem ter uma vida mais confortável e o acesso à melhor educação possível. Que vivessem com privilégios que eles mesmos não tiveram, criando oportunidades para que os mais novos habitassem outra realidade que, por fim, triste e ironicamente, determinava um afastamento entre todos. Essa separação é ainda mais evidente quando a autora se casa com um rapaz de sua vida adulta, distante fisicamente e socialmente de seus pais, agudizando as diferenças. Isso se percebe especialmente no cuidado embaraçado dos pais com os visitantes, como se o uso de polissílabos e citações daqueles os tornassem cidadãos de primeira classe e os demais estivessem a seu serviço sem reconhecimento.
"Uma ideia fixa: “O que vão pensar da gente?” (os vizinhos, os clientes, todo mundo). A regra básica era sempre dar um jeito de escapar à crítica dos outros, sendo muito educado, não emitindo opiniões, ou vigiando o tempo todo o próprio temperamento, para não deixar escapar nada que pudesse ser julgado pelos outros."
Sem oposição, a autora narra com uma tentativa de distância a história do pai, mas, em intervalos irregulares, questiona este trabalho, os sentimentos, a diferença entre eles, a perda iminente e já conhecida com um sentimento maior do que ela suportaria, que ela suprime em frases esfriadas à força. E, mesmo sendo o assunto que mais me aterroriza na vida e do qual eu sempre me afasto em qualquer forma em que o conteúdo se apresente, entrei nesse livro com uma voracidade e o terminei em pouco mais de 12 horas, considerando aí a noite de sono. Talvez por saber o futuro da história, o que restava a conhecer era a vida do personagem e não sua morte. Talvez isso tenha me salvado, talvez a narrativa de forma simples e sentimentos complexos, talvez por falar sobre família e cuidado. Talvez por, ao falar do pai, é a força da mãe que se sobrepõe, como alguém que é sempre o ponto forte da família, a estrutura que os mantém juntos de alguma maneira.
![]() |
Annie Ernaux |
Annie Ernaux não me deixou leve com esse livro, mas me fez ver, claramente, como ela supera a premiação que lhe foi dada. Enquanto escrevo, já penso na sequência, no livro seguinte dela que trará suas histórias reais, de memória de família e que reverberarão em mim com aquela profundidade que nos aperta o peito, ao mesmo tempo que nos abre um sorriso íntimo de satisfação, de sair da zona de conforto e nos fazer pensar em nós, em nossa história de vida e familiar, nas nossas pessoas simples e como, sem o que foi e é a vida delas, nada seríamos hoje.
"Não pensava no fim do meu livro. Agora eu sei que ele se aproxima. O calor chegou no começo de junho. Só de respirar pela manhã, dá para saber que fará um dia bonito. Logo não terei mais nada para escrever. Queria adiar as últimas páginas, queria que elas pudessem estar sempre à minha frente. Mas não é possível voltar muito atrás, corrigir ou acrescentar coisas, e nem mesmo me perguntar onde estava a felicidade."
***
Para me ajudar a manter este espaço sempre vibrante, me paga um cafezinho? É só clicar no buy me a coffee e eu te levo lá! Obrigada!