Fará três anos no próximo
fevereiro que estamos sem Eduardo Coutinho. Nosso documentarista favorito, um
dos melhores que já houve no Brasil e no mundo, que conversava – ao invés de
entrevistar – com seus sujeitos, protagonistas, convidados. Autor de Edifício Master – aquele que mostra a vida em um prédio de apartamentos de um cômodo em Copacabana, Cabra Marcado para Morrer – um dos filmes mais importantes de nosso cinema, histórico, proibido na ditadura e finalizado vinte anos depois e Canções – incrível e emocionante filme sobre as músicas populares brasileiras que marcaram as vidas de algumas (muitas) pessoas – para só citar três, Coutinho não extraía
ou arrancava verdades, mas compartilhava histórias, relatos íntimos de seus
brasileiros.
Este ano, o Brasil conheceu uma
grande documentarista, na literatura. Svetlana Aleksiévitch, ucraniana, nascida
em 1948 e laureada prêmio Nobel de literatura em 2015, começou a ter sua obra
traduzida para nosso português, uma sorte e felicidade –
e meus eternos agradecimentos a Lucas Simone, que traduziu direto do russo e à
Companhia das Letras, que acaba de lançar o terceiro volume, O Fim do Homem Soviético.
Coutinho e Aleksiévitch poderiam ser parceiros de trabalho ou, no mínimo, grandes amigos. Essa senhora nascida na Ucrânia da União Soviética conversa com seus conterrâneos sobre temas caros às suas vidas, grandes assuntos de nossa história mundial. O primeiro que li, sobre o acidente nuclear em Tchernóbil em 1986 (Vozes de Tchernóbil), é um impressionante conjunto de relatos sobre a tragédia, a percepção do povo sobre ela, as estratégias do governo para omitir dados e estatísticas ao mundo, as trágicas consequências e, no meio disso tudo, um ideal socialista levado ao extremo, a cegueira e também a clarividência de quem viveu aquilo tudo.
O segundo, A Guerra não tem rosto de mulher é sobre a participação da mulher na Segunda Guerra Mundial entre 1941 e 1945. Este livro abre nossa percepção para um universo novo – eu, pelo menos, nunca havia pensado em uma perspectiva feminina para as guerras – e passamos a conhecer franco atiradoras, fuzileiras, paraquedistas, pilotas de avião, tanto quanto enfermeiras, médicas, cozinheiras, lavadeiras. É chocante da mesma forma que o anterior e também por não seguirmos ideais políticos como era feito décadas atrás, esta crença na necessidade do combate, na importância e orgulho em participar, na vontade política e, é claro, na própria natureza dolorosa e selvagem de uma guerra. Esses relatos, em sua maioria feito por mulheres, puxam também para o lado sensível do front, para o cuidado nos hospitais de campanhas e nos acampamentos, para a coragem absurda, camaradagem e parceria – sem omitir suas cruezas e crueldades.
Agora me encontro com o desmantelamento da União Soviética, já nos anos 1990 (O Fim do Homem Soviético), entendendo mais uma vez estas verdades individuais, a adaptação a uma nova realidade, a um novo sistema e economia, ao novo cotidiano das pessoas comuns, testemunhas, participantes que, se estivessem em um filme de ficção, seriam figurantes. Aqui, como em Coutinho, são protagonistas.
Svetlana entra na sala das pessoas ou em suas cozinhas e puxa uma cadeira. Ela inicia sua busca por alguns sujeitos e nessas pesquisas, outros aparecem e se convidam, querem dar seu testemunho, querem que seu parecer esteja ali, tão importante e fundamental quanto o da amiga, o do vizinho. São registros vivos da nossa História recente, que foi presente até pouco tempo atrás e cujos livros de história os contam priorizando datas, patentes e sobrenomes, sem o detalhe do olhar subjetivo, sem o brilho do sentimento. Quem dera a escritora tivesse uma câmera à mão e filmasse seus encontros – seria diferente, de fato, mas poderia ser tão bom quanto sua escrita.
A região do que era a União
Soviética sempre me pareceu um imenso e nebuloso território que pouco se conhecia,
não fossem as pinceladas da Guerra Fria na escola, alguns filmes, os estudos
sobre cinema mundial, mas quase ou nenhuma literatura. A exceção, e para isso vale o parêntese, é o livro de John Steinbeck e Robert Capa, Um Diário Russo (Cosac Naify), em que Capa fotografa um
tanto do que Steinbeck narra, o diário de viagens de dois imensos nomes da
cultura mundial, no início da Guerra Fria, em 1947. Este olhar é do estrangeiro, de quem está habituado ao capitalismo, ao Ocidente, a outra forma de ver o mundo, suas polaridades e se confronta com uma realidade bastante diferente da anti-propaganda americana sobre aquela nação.
Agora um novo-velho mundo se abre e se apresenta da melhor forma, se descarnando, se entregando sob relatos ocultados por décadas de aprisionamento intelectual e político a essa voz e ouvidos curiosos e acolhedores da escritora. Aleksiévitch se aproxima de
Coutinho, caminha entre seus conterrâneos, revela os mais íntimos
testemunhos, sobreviventes e viventes do mundo soviético. A voz, ainda que a
guia seja a escritora, é dada para o outro e assim começamos a entender um
pouco o que foi o pensamento, o modo de vida soviético, o ideal. É impossível
parar de ler seus livros, seguimos com uma ânsia cada vez maior por novas
histórias, por entrar na cozinha daquelas pessoas e dividir aquele café – ou chá
se você preferir acompanhar a cultura local. Coutinho fazia o mesmo, mas sua caneta era a câmera.
Ainda não há um documentarista
cineasta como Coutinho. Seus retratos do povo brasileiro a partir de suas
conversas – mais do que entrevistas – descortinaram o maravilhoso universo das
não celebridades, mostrando que as pessoas comuns são muito mais interessantes em qualquer
aspecto do que aqueles modelos programados pela mídia. A diferença entre eles
talvez resida na profundidade e no interesse, apenas. A profundidade em suas
vozes, olhares e histórias, associada ao único interesse em dividir esse
conhecimento que têm sobre si, sobre o tema que o diretor trouxe, ao contrário de um mercado, da valoração do corpo físico como suporte publicitário. Eduardo segue
como uma perda irreparável e não há sequer substituto próximo; como não há
outra Svetlana, a documentarista da palavra. Se fosse possível, sugeriria
que ela fizesse uma série televisiva, se conseguisse convidar e deixar à vontade –
como Coutinho fazia – seus protagonistas. É uma ideia de alguém
carente por um cinema que não mais existe e que encontra na literatura dessa
grande mulher um conforto. Seus livros são, sem dúvida, a melhor descoberta
deste conturbado 2016.
Dois links importantes: a bibliografia de Svetlana e a filmografia de Coutinho.