Hoje eu quis matar alguém. Uma pessoa específica, mas hoje eu entendi a raiva, o desprezo por uma vida. Fica um gosto ruim na boca, uma ressaca sem álcool que dura mais tempo, machuca o estômago, anuvia o cérebro, esgana o coração.
Eu nunca quis matar ninguém. Nem o despresidente, nem Hitler, nem nenhum torturador. Talvez pelas distâncias históricas ou geográficas, ou por privilégio, pude pensar que odiar alguém era desperdício de energia, era um cultivo fétido para fazer germinar uma energia cinza de pó e fumaça.
Mas hoje, ao saber de um médico que estuprava mulheres desacordadas durante o parto de seus filhos, eu quis matar alguém.
Alguém que tornou um dos dias mais importantes nas vidas de tantas pessoas, puro horror e asco. O dia da vida virou um dia de dor, o amor se desfez no ato. O homem que estuprou grávidas vulneráveis, desacordadas em seus momentos talvez mais sublimes e reais, em seus momentos de vir a ser, não merece nada.
Mulheres que querem ser mães, que conseguem rápido ou que penam e sofrem para engravidar. Que chegam ao clímax deste enredo para desfazerem-se como corpos inertes e entregues a um ser que não cabe como humano. Não há humanidade ali.
Este homem eu quis ver morto. Agora, fica o vazio do sentimento depois do enjoo de horas, de uma perda que não é minha e é, é de todas as mulheres. A compaixão nos faz ver além de nós mesmas e aqui, viramos irmãs.
Estou digerindo o peso amargo que tudo apodrece. Pode ser doença, mas talvez seja só maldade. A crueldade, a desumanização, novamente. A certeza, para uns, de que nossos corpos não têm voz, como bonecas ocas à espera de alguém que nos possua, manipule, quebre. Mais uma vez, como todos os dias dos noticiários, fomos nada.
Que se resolva com uma justiça ativa, sem cegueira ou meias verdades. Essa é uma esperança tênue, à beira da desistência da crença nela mesma. A fé na reparação para as vítimas (não há reparo para o horror) é o outro lado da mesma moeda antiga e barata.
A ver se agora será diferente.
O peso da vontade de matar é muito grande, especialmente quando ele ultrapassa o ponto de ebulição, quando a raiva se esvai e a água, agora morna, tende a esfriar. É a intolerância da vingança, comida vencida que insistimos em mastigar, certos de um futuro sombrio. É um desfavor a nós mesmos, mas, quero acreditar que a humanidade também é atravessada pela ira como uma transformação. Vivemos à beira da perda coletiva de nós mesmos. Talvez ainda tenhamos chance de virar o leme.
Eu nunca mais quero querer matar alguém.
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Para saber mais sobre o que motivou este texto, foi o crime do médico anestesista que atuava até ontem em São João de Meriti, Rio de Janeiro, acusado de estuprar mulheres sedadas no parto de seus filhos.
Links de referência:
A notícia do G1. Segundo o jornal O Globo online, é apenas a ponta do iceberg, por essa notícia, dizendo que o Estado do Rio de Janeiro tem um estupro a cada 14 dias.