A nova série da Netflix, 1899, mostra já nos primeiros minutos ao que veio. Com uma construção minuciosa como a que vimos em Dark, estabelece de cara o clima do que estaremos a ver, assim como um universo à parte, que nos é, simultaneamente, estranho e familiar.
Quando o espectador assiste uma produção audiovisual, nem sempre se atenta à enormidade que é a transmutação de texto em imagem. Ao escrever isso, vem à mente aquela frase clássica da fotografia, de que ela vale mais do que mil palavras. No caso da construção cinematográfica, é mais realista dizer que para uma imagem - cena - se construir, precisa-se de muito mais do que mil palavras.
1899 faz isso em sua abertura. Com uma voz off (onde o narrador não aparece), vemos imagens sombrias e belas de natureza poderosa, céu e mar. A sinopse conta que esta é a história de passageiros de diferentes nacionalidades em um navio que segue da Europa para os Estados Unidos. No meio da viagem, se deparam com sinais de que outro navio, desaparecido meses atrás, está próximo e vão ao seu resgate. No texto narrado, como em um dos temas de Dark, falamos do elemento humano e da crença na ciência, sobrepondo o cérebro (pensamento e razão) à imensidão e (in)finitude do universo (mistério e caos). Na sequência, encontramos a protagonista: uma neurologista que fez algum tipo de tratamento de saúde mental à revelia antes do embarque, uma mulher de ciência que já foi tida como louca. Voltando aos minutos iniciais, o som é um elemento à parte, tão ou mais espetacular do que as imagens que absorvemos com sofreguidão: a combinação de efeitos sonoros com a qualidade da voz e da trilha, insere a tensão que descortinaremos em breve. Mais uma vez lembraremos de Dark, a série que traz a angústia como ponto forte, imensamente trabalhada no som e na fotografia. Mas, por que fazer desta forma?
Em 1899, nada é gratuito. A construção visual e sonora é preconizada lá atrás, nas palavras do roteiro. Ali, se visualiza a tensão, com indicações precisas sobre o que veremos e ouviremos, assim como suas metáforas. O cinema é um trabalho de criação artística coletiva e o que houver de indicações em texto, será compartilhado com as equipes que trarão ainda mais elementos criativos, darão profundidade e uma forma concreta ao que o roteirista pressupôs inicialmente. Esse conjunto de ideias se traduz em uma 'criação de clima' que suporta o universo inventado, elementos que dão contexto e plausibilidade à história que assistiremos. E nisso, os criadores de Dark, os mesmos de 1899 - por isso as menções acima - são brilhantes.
O que mais impressiona, e estamos no início da série, é a construção desse mundo e a forma como ela nos convida, imediatamente, a fazer parte dele. O mistério é a chave mestra, o clima sombrio, as apresentações de personagens dando a entender que cada um traz um problema, a adaptação de época com questões sobre medicina, filosofia, gênero e comportamento, e essa indicação, mais uma vez, de se tratar de algo que descobriremos juntos: espectadores e personagens. Em menos de meia hora do primeiro episódio, conhecemos os principais envolvidos na trama, figuras diversas e misteriosas que farão um amálgama das relações humanas dentro de um universo particular - um navio - e fantástico - o mistério do navio afundado, considerando o chamariz do sobrenatural versus a ciência, como a medicina do cérebro (que fatalmente se mostrará como um novo mistério, a mente humana) em uma protagonista desacreditada. É muita informação para pouco tempo de história, mas tudo parece fazer sentido e embarcamos nessa jornada com facilidade e questões em aberto à espera de solução.
Vamos seguir adiante com 1899, esperando desdobramentos interessantes, suspense, personagens complexos e mistérios para solucionarmos, como os grandes filmes e séries. Pensando que a série se passa no finzinho do século XIX, vale relembrar o que acontecia na época e como as revoluções em todas as áreas do conhecimento podem se fazer presentes aqui, de Darwin a Freud, de Pasteur a Dostoiévski, Marie Curie e Van Gogh, da evolução da fotografia e do nascimento do cinema. É uma produção para todos assistirem (exceto menores de 16 anos) e perceberem a riqueza de uma construção cinematográfica excepcional em muitos sentidos. Pelo menos, até agora.
No avançar da série, volto aqui para falarmos mais sobre ela.
Aguardem cenas dos próximos capítulos. =)
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