Para Ler | Leite derramado, Chico Buarque de Holanda

by - setembro 27, 2022

Retomando a vida no Café, encontramos Chico Buarque em seu Leite Derramado. Meu primeiro livro do compositor e cantor, uma experiência interessante que trouxe o que pensar. De narrativa leve e atravessada pela história do país, vale as ideias que desperta, sempre com um cafezinho ao lado.

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Leite Derramado veio através do meu trabalho de curadoria de conteúdos para projetos audiovisuais como uma ideia e fui conhecer a obra. À primeira vista, empolgação: vem coisa boa, Chico Buarque, não tem como não ser bom. Mas, ao entender que a história é sobre um homem em uma cama de hospital, os pelos do braço se arrepiaram. Tenho um problema com o tema da morte e, em especial, por doenças. Provavelmente é marca de uma família com médicos e uma mãe que nos colocava para assistir a dramas pesados nos anos 90. Chego aqui para contar mais.

Eulálio é um senhor centenário em uma cama de hospital que narra suas memórias para alguém. Este alguém varia: sua filha, a enfermeira, o auxiliar de enfermagem, quem estiver passando. As lembranças atravessam a história do país e do mundo em guerras, ditadura, império, escravidão, economia e outros temas por um viés muito particular. Este é um ganho na trama, histórias pessoais que cruzam a grande História são a melhor forma de aproximar o leitor de uma realidade que lhe é estranha e, ao mesmo tempo, reconhecível.

capa do kindle do livro Leite Derramado, de Chico Buarque.

Eulálio apresenta sua família partindo do pai, um homem escravagista que se torna abolicionista e do avô português que emigrou ao Brasil junto com a corte nos idos das ameaças de Napoleão. Ele próprio assume ser, com orgulho, de uma família abastada e marca isso por toda a narrativa, também trazendo a mãe burguesa e controladora, mas já assume, com o passar dos anos, que era como um esnobe ou ex-nobre. Encontramos o grande amor de sua vida, Matilde, cria de cozinha de uma família de pessoas brancas e que, ele mesmo, tem dificuldades em enxergar sua cor e origem. Para o protagonista, ela era irmã das outras meninas daquela família, estudavam na mesma escola no Rio de Janeiro e seu francês arrastado era um charme.. Matilde nos acompanha durante toda a trama pela voz dele e pela falta que ela lhe faz, desaparecida há décadas.

Além dela, vemos o discorrer de sua família em decadência moral, social e financeira. A filha que apanha do marido e perde parte da fortuna, a história dos varões da família sempre com o mesmo nome e derrocada em tráfico, vida sem trabalho na base do jeitinho. A moradia é uma presença na trama, é um dos marcos das finanças em falta por golpes, roubos, ausência de administração e cuidado de todos. A falta de estrutura sólida familiar os leva organicamente a um fracasso generalizado como a todos que, acostumados a uma vida de bonança sem esforço, esquecem de precaver-se contra tormentas.

A graça do livro está na maestria da linguagem. A narrativa memorialista faz sentido ao homem que se perde em devaneios, repete histórias, muda a ordem dos acontecimentos. É interessante ler a amarração da trama, pois nos traz à mente as nossas próprias memórias, tecidas a partir dos sentimentos e sensações. Quando uma lembrança ressurge, nunca é em sentido cronológico como em um livro biográfico, mas parte de um cheiro, uma palavra, música, paladar, afeto. É daí que resgatamos as emoções que trazem o passado, a pessoa, o bicho de estimação, uma viagem, ao presente.

Imagem de rosto de Chico Buarque de Holanda. Autor de Leite Derramado.

É isso o que Chico Buarque faz tão bem. A falação foca no que marcou mais a vida do protagonista e, ainda assim, constrói uma história que nos faz querer saber mais, pela própria forma de contar. Propositadamente, Eulálio se confunde com quem lhe escuta e pode soar perdido e aéreo, como muitos idosos em condição similar. E como muitos idosos em situação similar, garante momentos de lucidez e precisão na escolha das palavras e pensamentos com uma clareza impressionante. O que importa é o que está dentro daquele homem, o que lhe pertence e que ele sente relevante compartilhar, entre os remédios que toma e o entorpecem, e exames de imagem. As memórias, o que o nosso organismo retém, é o que nos marca e molda.

Há um ponto que é próprio do protagonista e que nos deixa em alerta. É a história de um homem branco e velho da zona sul do Rio de Janeiro com suas marcas racistas da velha nobreza e machistas da cultura de então, ainda que pintadas com possíveis ironias e alguma humanidade. Dá uma sensação diferente ler o livro, entre o prazer da excelente escrita presa em um conteúdo que, por vezes, incomoda. Me senti em cima do muro, entre entender a ironia fina e a licença poética do autor em criar o personagem e deixar sair dele tantos descaminhos de época. Há um sentimento estranho no final da história, que nos deixa mais interessados em Matilde e no que falta saber dela, e também na derrocada familiar do que, em si, nas memórias perdidas de contexto de Eulálio.

Por fim, Leite Derramado é um título intrigante e seu significado é lindo e profundo quando chegamos a ele. Novamente, é de Matilde que falamos, de quem queremos saber sempre mais e de quem, como a Eulálio, sentiremos mais falta ao fecharmos o livro.

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2 Comentários

  1. Tati, não conhecia esse livro. A história parece aquela que incomoda, mas que de alguma forma não faz a gente querer largar. Fiquei com vontade de saber mais sobre o Eulálio e a Matilde. Geralmente, não leio muito esse gênero, mas a sua resenha é tão bem escrita, que dá vontade de embarcar. ♥

    Beijos, Carol
    www.pequenajornalista.com

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    1. Oi Carols! Então, é, de fato não dá vontade de largar, mas mais por curiosidade com relação à Matilde, ficamos na sede de querer saber mais sobre essa mulher tão cheia de complexidades e que fica sempre ali, à espreita da história, sem voz, apenas nas percepções do homem. Essa parte é bem interessante mesmo!

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