Por que assistir | Crítica: One child nation (2019)

by - outubro 22, 2020

Nós estamos vivendo uma guerra populacional. Esse era o slogan na China dos anos 1980, quando iniciaram a campanha de redução da população, através do controle de natalidade: a política de filho único. Cada família poderia ter apenas um filho. Como controlar isso em um país tão grande? A documentarista Nanfu Wang é quem investiga a história, como a primeira filha de uma família que burlou a regra.

diretora nanfu wang discute a política de filho único na China.
A diretora Nanfu Wang e seu primogênito

O que é a política de filho único (one child policy)?

Exatamente o que o título diz. Na China do final dos anos setenta e início dos anos oitenta, o governo fez um cálculo de superpopulação à la Thomas Malthus (1766-1834). Com isso e muito pânico, entenderam que, com o crescimento exponencial de seu povo, o país entraria em derrocada, com escassez ainda maior de alimentos e aumento da pobreza - situação vivida por muitos anos. Assim, instituíram uma severa política em que toda e qualquer família chinesa, a partir daquela data tivesse, no máximo, um filho. 

O resultado sabemos: tragédias, crianças sendo abandonadas em feiras, mercados, esgotos. Sendo vistas morrerem à míngua ou entregues à adoção. Famílias se escondendo, grávidas fugindo. E muita gente também, entendendo que aquela política era necessária e fundamental a uma vida melhor no país. Vamos ao filme.

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One chid nation: Nanfu e família, à espera do irmão

A relevância: do particular para o universal

Os pais de Nanfu queriam, como toda família patriarcal, um filho homem. O nascimento dela foi o motivo para uma segunda e clandestina gestação. Agora adulta e mãe de um bebê, ela busca em seu país, conhecer as pessoas por trás daquela história. A diretora encontra cidadãos e cidadãs que viveram e tiveram influência na vida de tantas famílias, inclusive na sua.

Os documentários que partem de uma premissa íntima e particular e que se traduzem em uma narrativa de assunto universal, têm público garantido. Ao assumir que estamos participando de uma história pessoal, enquanto público, nos colocamos naquele lugar, nos espelhamos naquelas circunstâncias, por mais díspares que sejam da nossa realidade. Nos inserimos no filme de forma mais fluida. É o princípio de uma boa história: se bem contada, pode ser sobre qualquer coisa. Neste caso, é sobre o controle populacional por parte do Estado chinês, através de planejamento familiar, abortos e esterilizações em massa de mulheres. Sempre e apenas de mulheres.

documentário vencedor de sundance, one child nation
A diretora e a propaganda da política de único filho

Estado totalitário, propaganda e banalidade do mal

Toda política absolutista, todo governo não democrático - ainda que se intitule assim - necessita de uma massiva propaganda para se sustentar. Não precisa de um estruturado plano de governo que promova melhores condições de vida, mas precisa de um grande planejamento de marketing e controle de informação, para se fazer crível e necessário ao povo. No mundo capitalista, há um sem fim de nações assim. No comunista, também. Aqui, a dor maior é usar essa propaganda para afetar tanto o íntimo e psicológico das famílias - e, particularmente, de todas as mulheres das famílias - como toda a estrutura e pensamento do coletivo. Uma grave ofensa aos direitos humanos.

A importância desse filme reside, não apenas na denúncia de um sistema e política atrozes, mas em como a documentarista buscou diferentes perfis para discutir o assunto. Artistas, parteiras, médicos, planejadores familiares, traficantes de crianças, jovens, sua família. Pessoas que praticavam abortos contra a vontade das parturientes e que também faziam nascer seus primeiros filhos. Um poder de vida e morte acima da moral, já que eram regidos por lei. Mas, fizeram o contrário do que vimos do posicionamento de Eichmann após a Segunda Guerra Mundial. Funcionário do governo nazista que contribuiu para o extermínio dos judeus, Eichmann concretizou a banalidade do mal na omissão de responsabilidade, ao direcioná-la ao poder estatal. Nas pessoas da China, encontramos remorso, culpa e problematização.

De um lado, uma médica que fazia abortos e nascimentos assume o poder, os feitos e a culpa. Hoje, faz caridade em prol de uma remissão impossível dos assassinatos que cometeu: "Embora possam dizer que não foi maldade por ser o meu trabalho, eu fui aquela que os matou. (...) O Estado dava a ordem, mas era eu quem as cumpria." Do outro, uma planejadora populacional que faria tudo novamente, se necessário fosse, afirmando que o Estado salvou a nação. Era ela quem ganhava os maiores prêmios por serviço, enquanto perseguia mulheres que fugiam correndo para não perderem suas gestações de até oito, nove meses. 

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As crianças abandonadas, os "órfãos" que seriam adotados por estrangeiros

A arte como marco e denúncia

Peng Wang, um artista plástico, conta a sua relação com a política de filho único que começou a criticar a partir de 1996. Seu tema então era o lixo e ele fotografava áreas de depósito irregulares. Em uma dessas imagens, embaixo de uma ponte, percebe que havia registrado um saco plástico preto, descrito lixo hospitalar e semi aberto. Não é preciso dizer o que havia nele. A partir dali, sua perspectiva mudou e ele passou a buscar e produzir imagens que retratassem a fragilidade da vida em tamanho descaso - proposital - de um governo.

O filme é duro, difícil por vezes, mas necessário. Há cenas que queremos - e podemos - evitar, mas é importante entender o todo. Que não é apenas sobre o controle de natalidade chinês. É sobre o absolutismo de um poder, mesmo irracional, injusto e criminoso, sobre uma nação. Sobre os corpos de mulheres, sobre a determinação de vida e morte do outro. E a sua permissividade local e a passividade mundial. Ainda mais, é sobre a massificação da informação e do poder do discurso, qualquer que seja. 

Tratando do último, o discurso, hoje é mais fácil percebermos sua manipulação. Com a avalanche de fake news, vem também as críticas e denúncias a elas. Mas, ainda assim, bem construídas e estrategicamente difundidas, é possível se fazer acreditar em quase qualquer coisa, como o terraplanismo, as vacinas que fazem mal, atalhos para tratar covid-19 e um sem fim de histórias absurdas que não só corrompem fatos, como ideias, pensamentos e famílias.

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As gêmeas separadas na política de filho único

Imprescindível, pessoal, feminista e intransferível

Na história familiar da diretora, ouvimos seu tio, irmão, avô. Os homens da família, cada um de uma geração e pensamento. É nisso que o filme ganha, para além da relevância histórica. O irmão sente-se culpado por ter vivido um favorecimento machista, vendo sua irmã ser relegada a segundo plano durante toda a vida. Ele só existe porque nasceu 'menino'. Se fosse uma menina, seria descartado prontamente pela família, talvez abortado, morto no parto ou deixado em qualquer lugar. Com sorte, seria entregue a um traficante ou orfanato. Foi o que aconteceu à filha do tio. E o avô, que passou fome e muito sofrimento e pobreza no país, confirma a necessidade do programa. Tudo é compreensível. Tudo é cruel.

O controle populacional do filho único durou 35 anos. Atualmente, a China é um país com poucos jovens e que envelhece rápido. Então, o Estado reverteu a política e hoje pede que as famílias se formem com duas crianças. O filme ganhou o prêmio do júri em Sundance em 2019 e é um retrato importante, quase um documento do que foi a política de filho único e como afetou a vida de milhares de pessoas. Ali, vemos as famílias que mataram ou abandonaram seus filhos, os supostos órfãos, adotados por famílias dos Estadus Unidos, Canadá e Espanha. Vemos abortos forçados, quem se arrepende e quem concorda com aquele projeto. Vemos famílias que buscam seus filhos e irmãos, gêmeos que foram separados. E hoje, com a nova política, pouco mudou. O controle não acabou, ele só mudou de ideia.

One child nation está na amazon prime vídeo.

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