Por que assistir | Crítica: Lindinhas (mignonnes ou cuties) 2020

by - setembro 16, 2020

Como se sabe, um boa polêmica sempre faz bem ao alcance do público de um produto de entretenimento e/ou artístico. No cinema não é diferente. Lindinhas (Cuties, Mignonnes ou como aparecer na sua netflix) ganhou a curiosidade do público por aparentemente tratar da sexualização de meninas na França. Mas será que é realmente sobre isso? Vamos à crítica.

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Lindinhas, (Cuties ou Mignonnes), de Maïmoune Doucouré
É claro, a imagem que queremos ter de garotas de onze anos não é a de objetificação, de imprimir desejo e sexualidade. São crianças. Sabemos os riscos da pedofilia e conhecemos bem o tratamento dado a meninas e mulheres no mundo. Mas, analisando friamente, o que o filme traz é o comportamento 'esperado' da adolescência no 'ocidente'. Mais uma vez, com a mídia e o acesso livre às redes sociais - vale assistir ao filme o dilema das redes (2020) - as músicas e videoclipes encontram um público em formação, que não necessariamente compreende os significados daquele produto, e dança, o consome de forma indiscriminada.

O filme é mais complexo do que estas óbvias ideias e a polêmica perde validade à medida que ele avança. Lindinhas traz as diferenças culturais de um subúrbio em Paris, onde parte da população vem de ex-colônias francesas. A família de Amy, nossa protagonista, é parte disso, vindo do Senegal e suas tradições são bem marcadas, especialmente na condição da mulher - tema que o filme explora sensivelmente e, este sim, é o ponto em que devemos focar.

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Lindinhas, (Cuties ou Mignonnes), de Maïmoune Doucouré
A mãe de Amy vai ter que preparar o segundo casamento do marido. Amy e a avó terão que ficar felizes em sua presença. Nada se diz do pai que pouco aparece ou do irmão a que nada é solicitado, apenas que brinque e seja criança. Enquanto a puberdade chega à nossa heroína com os deveres de mulher aos onze anos, a Amy criança se quer adolescente e passa a se interessar em dançar com as amigas, fazer parte de um grupo, se vestir na moda - ganhar identidade.

Lindinhas constrói uma trajetória sensível de formação e uma das cenas mais marcantes envolve o vestido que ela ganha da família. Uma peça que sai do desejo ao desprezo, com a confusão e incômodo representados no olhar de Amy, quando ela descobre que deverá usá-lo no casamento do pai. É como um fantasma no armário, a representação de sua cultura familiar, uma tradição a que não se pode fugir. A tensão é firme e pertence a ela apenas, diz respeito à sua descoberta enquanto indivíduo.

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Lindinhas, (Cuties ou Mignonnes), de Maïmoune Doucouré
O filme não trata as garotas como adultas e nem pretende sexualizá-las. Não é o objetivo da diretora em seu primeiro longa, Maïmouna Doucouré. As cenas em slow motion, exibindo os rostos das meninas em poses sensuais sob uma música clássica, traduzem justamente o descompasso dos gestos com quem os pratica. É muito mais um embaralhamento de significados do que uma problematização dos corpos. Mas, alguns apostarão na minha inocência. 

Insisto e justifico: as espinhas nos rostos das crianças, os olhares fixos para a câmera, claramente direcionados para nós, são como uma provocação direta, como quem pergunta: há sensualidade aqui? A briga de meninas na saída da escola, a calcinha infantil que aparece depois que uma calça justa é puxada para baixo e as reações do público na apresentação de dança insistem em mostrar não uma promessa a olhares doentios ou intencionados, mas a marca da ingenuidade por trás da fantasia. Um jogo arriscado, especialmente quando o público é diverso e em tempos em que a polarização e polêmicas são maiores do que a reflexão e o debate. E neste caso, o filme vence.

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Lindinhas, (Cuties ou Mignonnes), de Maïmoune Doucouré
Não há porque cancelar a netflix, achei que esta política de cancelamento nas redes sociais - e, pelo visto em qualquer lugar - já havia saído de moda. Lindinhas vale o ingresso e é aposta certa no streaming. É um filme sobre a saída da infância e entrada na adolescência, novos comportamentos, menstruação, despertar tenro da percepção do outro - menos como interesse amoroso e mais como curiosidade. As brigas de meninos e meninas no primário e a vontade de saber mais sobre as diferenças físicas são evidências disso. A ausência de sexualidade é tão marcante quanto encontrar uma camisinha usada e achar que é um balão de soprar.

Talvez a ministra Damares Alves tenha se chocado - se é que viu o filme ou leu alguma crítica - com as diversas camadas que ele desperta em seu público. Talvez, não só ela, mas quem enxergou apenas a coreografia supostamente pornográfica, tenha se horrorizado com as diferenças culturais e esqueceu o que se dança e dançava em nossa infância e adolescência brasileiras. Talvez, mais uma vez, alguém tenha se intimidado com a religião ali expressada, especialmente na cena ritualística das mulheres. Para mim, pareceu algo como o que encontrei em Os mestres, os loucos (1955), do documentarista etnográfico, Jean Rouch. Naquele filme rodado em Gana, há rituais em que os personagens se manifestam para além das palavras e o mais surpreendente é ver o comportamento de seus corpos, que mimetizam funcionários da colonização francesa no país. 

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Lindinhas | o pôster novo e o censurado
Não sei se a intenção era trazer à memória esta representação em Lindinhas, mas, quando a mãe e a avó de Amy promovem um ritual com a água e o frio, 'libertam' o corpo da menina que agora se manifesta sem o aval da consciência, simulando os gestos da dança que ela praticava com as colegas. Novamente, uma cena linda, uma percepção daquela cultura de quem vem de dentro, de quem conhece as sensibilidades e intimidades dos tratos familiares e culturais. 

É uma pena, ainda que compreensível no período que vivemos, que Lindinhas seja reduzido ao tema da sexualização da infância e ainda taxado como um apelo à pedofilia. Não é disso que trata a obra, mas de identidade, diferenças culturais, descobertas na infância e adolescência. É um filme lindo e sensível que merece ser visto na íntegra para, então, trazer ao debate. Não cancela a netflix por causa dele, a empresa de streaming de filmes até pediu desculpas pelo pôster que mostra a cena das meninas na competição e fez uma nova versão, o que me parece justo e um compromisso social, de certa maneira.

Segue o trailer. Assiste ao filme e vamos conversar um pouquinho? É sempre a melhor parte, quando saímos do cinema. Para manter nossos debates em dia, vamos tomar um café? =)

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