Miscelânea ou Pó de luva, Jennifer Conte
Eu não sei por onde começar. Na verdade, comecei dando o título que eu já havia pensado há dias, mas me arrependi. Começar pelo título limita muito, estou presa aqui. Talvez o certo seja escrever e depois dar o título. Talvez o certo seja só escrever. Talvez nem exista essa história de certo. Talvez.
Escrever deveria ser como fazer qualquer outra coisa. Eu quis dizer fácil, como lavar louça, ou tomar banho, ou pensar. E é. Mas não é. A diferença é que sua escrita pode alcançar longe. E, aí, seriam muitos pares de olhos te perscrutando, te conhecendo, te despindo. Escrever é autobiográfico sempre. Mas não leve ao pé da letra, considere as entrelinhas.
Essa nudez a que me refiro ao ser lida nada tem a ver com a deliciosa sensação de tirar a roupa. Tirar a roupa é fácil e prazeroso. Adoro, em dias quentes, ficar nua na varanda ao final da tarde. Olho para esquerda e vejo o Cristo Redentor vestido de um céu rosa. Seios livres e por do sol. Em dias frios, dá-se um jeito. Um cobertor macio e um corpo quente.
Para a nudez da alma é preciso muita coragem.
Ando pensando demais e querendo entender todos os porquês da vida. Todos é coisa à beça. Quero um explicação pra quase tudo. Quase. E tenho saudades absurdas. Ab-sur-das. Separação de silabas, matéria de segunda série. Tenho dias melancólicos, isso acontece desde que me entendo por gente, e dias de sol e céu azul. Nesses dias geralmente fico insuportavelmente feliz. É acintoso. Lembrei agora que, uma vez, há uns 15 anos, me disseram que eu era insuportavelmente bonita. Eu não acreditei. Nunca soube receber elogios e simplesmente agradecer. Eu sempre estrago tudo. Até hoje.
Por falar em saudade, eu tenho lembrado muito de pessoas e momentos que passaram. Pes-so-as que pas-sa-ram. Passar pessoas. Deixar pra trás. Nunca fui boa com isso, sofro em demasia com as pessoas que ficam pelo caminho. No entanto, já releguei e fui relegada. Aqui se faz, aqui se paga. Minha mãe sempre diz que o inferno são os vivos. É verdade. Como somos mal resolvidos. Escolhas erradas têm seu preço. Na pele.
Tirei a Blusa.
Ando muito distraída, só hoje já transbordei o filtro duas vezes. Não é o filtro que transborda, é o copo. Meu filtro é lento, eu boto o copo para encher, vou fazer outra coisa, esqueço. Transborda tudo o que precisa sair, os excessos. Palavra chique, excessos. Faz uma poça, um aguaçal, um aguaceiro. Adoro sinônimos. Aguaceiro também pode significar contrariedade, infelicidade, sabia? Vem a calhar, pois fico furiosa quando o copo transborda. Desbordam meus aguaceiros. Eu os seco. E passa.
Muito tempo sobrando para pensar a vida e seus caminhos. Estou com meus filhos, vendo séries, comendo brigadeiros de sabores inimagináveis e implorando por uma massagem nos ombros em troca de uma açaí. Eu tenho tido vários torcicolos. E eu tenho implorado também para eles lavarem a louça de vez em quando. Coisa boa essa história de duas cubas na cozinha. Um esfrega; o outro enxagua.
Muito louco ser mãe deles. Não posso imaginar a vida sem os dois, mas eu descobri recentemente que talvez o sonho de casar e ter filhos não fosse exatamente meu. A maternidade real faz dessas coisas, a gente questiona nossas maiores certezas. Maternidade não é romance levinho e despretensioso, me enganaram. Isso, contudo, não importa mais. Eu os tenho, e eu os quero com todas as minhas forças. Há 12 anos que vivo para ser mamãe.
Tirei a saia.
O meu outro lado tem ideias incríveis que nunca saem do imaginário. Tem medos absurdos, só menores do que as saudades. Saudades, com s no final, é mais gostoso. Saudadiz, puxa bem o s.
Medos. São muitos. De não dar certo, de não conseguir, de não ser o suficiente, de não merecer, de passar o tempo. A propósito, faço 40 anos daqui a 68 dias. Ave Maria. Tem que ser pra ontem. Tudo pra ontem. Na realidade, eu procrastino, tu procrastinas, etc. Isolamento, distanciamento, tempo, espera. Mas tinha que ser pra ontem. Porra.
Eu tenho feito tudo em casa, limpo, cozinho, lavo roupas e louças também. Hoje guardei uma faca mal lavada, ninguém viu, guardei assim mesmo. Lavei roupas de manhã e elas ainda estão na máquina, por estender. Eu detestava estender roupas, agora já acho tranquilo, estender bem é uma arte.
Passo pano na casa diariamente. Uso luvas de látex descartáveis sempre que mexo com água. Vivo com as mãos brancas e outro dia me perguntaram: O que é isso na sua mão? É pó de luva, eu disse. Achei tão lindo que resolvi escrever algo com esse título. Pó de luva, pó de lua. O saudoso João Ubaldo Ribeiro, em “A casa dos budas ditosos”, disse que todo bom título de qualidade literária não quer dizer nada. Então, tá certo. Acrescentei miscelânea ao título para legitimar essa bagunça.
Bem vinda de volta. Agora, sim, nua.
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Quem escreveJennifer Conte é mãe em tempo integral. Vive a maternidade real. É também assistente social e comissária de voo. Sonha todos os dias em alçar novos voos e escreve às vezes.
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