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nas termas de Caracalla, contemplando o passado romano num então presente janeiro de 2020. |
2020 começou com a paz de
espírito de quem, aos poucos, vai se dando conta que maturidade não é fake
news. Fui dormir antes da meia-noite. Há 25 anos, eu teria visto o
alvorecer rosa dourado do ano novo cintilar num pé de caatinga às margens do
meu nativo Rio São Francisco. Há 15 anos, no auge da minha boemia dos vinte e
algo, eu teria acordado com o bater das ondas na areia da praia de Copacabana
segurando uma garrafa de cidra barata como testemunha. Em 2020, despertei com
os fogos de artifício na distância de algum lugar no inverno de Houston, Texas,
onde construí meu atual lar. Cada foguete, uma fada do passado ao meu ouvido:
“Escuta-me! Reverbero as explosões do seu coração de outrora! Vem reviver a
minha chama! Injeta festa na alma!” Senti o coração pulsar centímetros cúbicos
a mais de nostalgia enquanto um novo ano se abria. Aí então o cérebro mudou a
marcha, passando da ré para o sonho da viagem de férias que estava prestes a
ocorrer. Porém, virei para o lado, dei um beijo na testa do meu marido que já
roncava em uníssono e dormi com a leveza dos que já viveram o suficiente para
destilar recordações e planos sem se embriagar. A beleza do amadurecer está
nisto: o presente começa a ganhar a batalha sobre o passado e o futuro. Jamais
saberia eu, que cerca de três meses depois daquela noite, o mundo iria parar em
proporções semi-apocalípticas e que eu teria que rever o conceito de estar
presente para lidar com a pandemia do século.
Dali a poucos dias, eu partia
para a cidade eterna, Roma, em uma das muitas viagens que tive o privilégio de
vivenciar. Acompanhei o nascimento da minha sobrinha, filha da minha irmã que
por aquelas bandas há alguns anos se instalara. Foram três semanas de um
sentimento arrebatador de plenitude: cercada de família, da chegada de uma nova
vida, de descobertas e gargalhadas terapêuticas entre as icônicas ruínas do
império romano. A minha vida naquele momento parecia estar completamente no
lugar. Foram tantos anos batalhando dilemas - trabalho, saúde, mudança de país,
casamento, dinheiro, ter ou não ter filhos e tudo mais que caiba nos parênteses
- sempre aguardando a chegada da tal estabilidade. Naqueles dias de janeiro eu
finalmente me brindava com taça de cristal, saboreando cada momento do meu
presente, mas consciente do meu privilégio, consciente do que construí no
sentido material e psicológico e consciente, sobretudo, de que todas aquelas
experiências extasiantes eram passageiras. Entre cursos de life coaching
e o arsenal paramilitar de auto-ajuda da Internet, aprendi que a vida é
impermanente. E não deu por outra. A viagem intercontinental de volta ao Texas
já anunciava que o mundo tomava outras dimensões e que a humanidade caminhava
em areia movediça.
Máscaras nos aeroportos. Os
olhares de terror e asco a mim dirigidos quando espirrei no terminal. Em
semanas, o mundo social se fechou e a vida se recolheu para dentro de casa. O
nirvana romano virou página do passado e não houve maturidade ou life
coaching suficiente para aguentar o tamanho da transformação (ou perceber
de imediato que a realidade estava dando a oportunidade de um toque de recolher
espiritual). A ruptura foi cavalar. Como me firmar na realidade se a realidade
era tão imprevisível? Foi difícil me firmar no presente. A mente viajava em
velocidade supersônica para lugares escuros: haveria emprego? Meus pais vão
morrer? Irei parar num hospital entubada sem a possibilidade de contato humano?
Em diversas ocasiões precisei respirar com meditação guiada para não perder o
eixo. E aí veio o clarão da transcendência na forma de um curso online
para enfrentar os novos tempos: a realidade é que a vida nunca foi, não é e
nunca será previsível. Repito: a vida não é, nunca foi, nem nunca será
previsível. Pensar de forma contrária é pura ilusão.
Antes de COVID-19 nada garantia
que sairíamos de casa pela manhã e retornaríamos sãos e salvos para o jantar.
Nada garantia que nossos sonhos seriam alcançados ou que nossos corações não se
partiriam em mil pedaços. Ainda que eu tivesse metas e planos, passei boa parte
da vida recolhendo os cacos dos sonhos que não afloraram. A realidade sempre
deu um jeito de se mostrar rainha e ai de nós, virgem Maria, ao tentarmos
resisti-la. Existe receita sim para enfrentar o incerto: a não-resistência.
Aceitar o presente imperfeito que chega com máscaras respiratórias, distanciamento
social e adiamento de planos. Aceitar o presente é nada mais que aceitar o
óbvio, ente escorregadio que uma hora faz total sentido e em outro gangrena
horizontes. Lembrando que o presente também passará, pois uma das poucas leis
universais é a da impermanência. Não confundir com passividade: existe lugar
para a luta, mas é necessário ser estratégico. A luta, neste contexto, é pela
volta da saúde coletiva, pelo afastamento da doença ou da possibilidade da
morte: lutar é lavar as mãos, descontaminar as sacolas de supermercado, ficar
em casa (vale também lutar para descontaminar a sociedade das cegueiras
político-sócio-econômicas pré-isolamento e talvez agora seja o momento mais
adequado).
Ainda não é momento para fogos de
artifício. O mundo segue repleto de cadeados que limitam o nosso ir e vir e há
uma longa estrada pela frente até a estabilização da curva e a criação de uma
vacina. E por isto mesmo, se assim o presente desejar e não puxar o meu tapete,
esta noite vou deitar antes da meia-noite, dar um beijo no meu marido e dormir
determinada a pensar que em meio de toda esta bagunça ainda vivo cercada de
amor, saúde e privilégios. Porque é no presente que vivemos.
Quem escreve
Juliana Moreira é filha da
caatinga, cigana de espírito, escritora errática que de tempos em tempos tira o
mofo dos dedos. Suas antigas escritas estão em português no Fronteirices e
em inglês no Tales of lust and gore. Pode mandar uma mensagem por lá.
1 Comentários
Viagem desafiadora desenhada no seu lindo texto: voltar-se para dentro de casa e de si mesma...O toque de recolher espiritual anuncia maturidade, autoconhecimento, sábias reflexões...Tim tim ao presente eleito! Carpe Diem! Grande abraço.
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