
De
tempos em tempos ela volta a ler em um ritmo voraz. Alguma coisa lhe alerta no
cérebro de que está perdendo tempo, entre o vai e vem do trabalho, ainda que
passe essas horas olhando a vida dos outros, ouvindo música.
Ou
vendo o mar no ponto da cidade que acha mais bonito. Ela não lembra quando foi
a primeira vez que viu aquela curva da avenida que margeava a encosta, uma das
inúmeras encostas parcialmente habitadas. O morro encosta no mar e a estrada o
divide no meio, como um recheio de bolo que escorre pelas beiradas. Em dia de
ressaca, o mar bate violentamente contra a parede inclinada que lhe devolve em
igual medida outra onda. Como é perto da praia, da planície que surge de súbito,
as ondas se chocam em direções estranhas e causam um estrondo que não se ouve
nunca, mas que se vê, nas espumas que sobem a não sei que altura. Quando o mar
se prepara para uma ressaca começa a vibrar, uma pulsação o toma, mas
precisamos esperar o dia seguinte. O maior espetáculo da terra está ali,
aberto, amplo, violento.
Hoje
ela não tem visto muito isso. Construíram uma ciclovia depois da pista,
atrapalhando a visão da encosta. Não tem problema, ela pensa — aparentemente há
que haver ciclovias pela cidade inteira agora. Se for em pé no ônibus, consegue
alguma coisa.
Ela
voltou aos livros. Tenta alternar entre os romances e os livros de estudo —
fotografia, cinema, filosofia, relações de poder — mas sempre acaba comprando
outros romances e entope a estante com mais histórias pela metade. Se pudesse
passaria a vida lendo, estudando, escrevendo. De certa forma o faz, mas escreve
e-mails corporativos, lê artigos sobre o trabalho e fala muito ao telefone. O
tempo que sobra é pouco para o tanto que precisa. Agora ela não ouve música.
Não consegue se concentrar no livro se escuta algo, se distrai e quando vê,
voltou 3 vezes naquela frase curtinha e saiu cantando a letra. A música lhe
atravessa sempre, usa um caminho que ultrapassa o cérebro e lhe aperta o peito
se ele não estiver muito seguro de si. Desistiu, por enquanto.
Esqueceu
os caminhos de casa e do trabalho, não pensa mais no tempo que leva entre uma
coisa e outra. Assusta-se quando vê que já passou por alguns bairros e hoje
quase gosta dos engarrafamentos, mas sempre chega reclamando no trabalho, não
vamos abusar. Não vê mais a vida das pessoas, não ouve música, não há encosta e
ondas voadoras. Essa moça quase chega aos 33 anos e pensa em romances, ainda
que em sua vida tudo sempre tenha dado errado. Há um misto de expectativa,
dúvidas, descrença e frustração, mas ela ignora tudo agora, porque se perde nas
histórias, um pouco de conforto não faz mal. Outro dia se pegou pensando sobre
esta história de zona de conforto. Qual é mesmo o problema disso?
Voltando
para casa, uma coisa lhe aconteceu. Leu não sei quantas vezes a mesma frase, o
mesmo período, na verdade. Dobrou a página para reler em casa, riu sozinha,
quase sem acreditar. Guardou na memória uma frase que era dela, ela tinha
certeza. Não fazia muito tempo, havia contado essa mesma história com palavras
senão iguais, bem parecidas àquelas e não conseguia entender porque estavam
ali. Pensou em mandar uma mensagem para ele, o outro personagem da história
real para lhe contar a ficção e o mais importante, perguntar qual tinha sido o
filme.
Ele movimentou um pouco o
joelho, e um pouco mais, até encostá-lo no dela.
Transpirava. Quando o filme
acabou, ele não tinha ideia do enredo.*
Ela
o conheceu fazia tempo. Foram apresentados por um amigo na entrada de uma sala
de cinema alternativo que frequentava em uma noite de domingo. Ela não
acreditou no que estava acontecendo, não era de se apaixonar assim, sem nem
saber o nome, em uma sessão qualquer de algum provável filme francês. Ele fazia
aniversário, mas ela só soube disso depois, quando saíram do filme que ela
nunca lembrou.
Ela
riu sozinha hoje no ônibus. Estava tudo gelado mesmo sendo verão, as pessoas
não sabem regular os aparelhos de ar condicionado. Enrolada em um casaco
fininho, ela seguia virando as páginas e parou ali, dobrou a pontinha porque
passaria adiante e queria marcar aquela frase, como se fosse possível
esquecê-la. Saiu do ônibus e ainda teria que pegar outro, é um desses de
conexão. Mesmo sendo tudo muito rápido, estava ansiosa, precisava chegar em
casa, não podia continuar parando no meio das calçadas, desse jeito vai ser
assaltada e pior é se lhe tomarem o livro.
Não
contou para o personagem que a história deles estava escrita em um romance.
Pareceu demais, ela pensou depois de um tempo. Foi uma história platônica, com
obstáculos que na hora não pareciam ser muito importantes, era questão de
esperar um pouco mais, não fosse a casualidade responsável por um fim inesperado.
Hoje não tem mais isso de paixão assim, do nada. Mas por dentro, em um espaço
que ela não costuma dividir com ninguém, é tudo ao contrário, está lá essa
vontade de encontrar com alguém e tropeçar em um olhar desconhecido que lhe
parecerá familiar, como uma cena de comédia romântica. Vai rir, com uma certeza
quase louca e uma ponta de desconfiança que tentará dissimular, sem acreditar
no que pode acontecer. Dessa vez não haveria obstáculos, a história não
aparecia num livro de romance, de mentira — e quem acreditará nisso? Pode ser
que volte a dar tudo errado novamente, mas ela tentaria. Dessa vez, quando ele
disser que vai correr perto de sua rua, ela vai deixar a porta aberta.
***
*O
livro: KRAUSS, Nicole. A História do
Amor. Companhia das Letras.
1 Comentários
Esse texto faz bem pra alma.
ResponderExcluirMuito bom, nos faz pensar, viajar, meditar,ter contato com nosso eu,que por vezes está silencioso.
Parabéns Tati!