Crítica: Psicose
Seguindo nossa trajetória com o Artista de Cinema de maio, eis aqui um pouco mais sobre Psicose, de Alfred Hitchcock. Um de seus mais aclamados filmes, uma adaptação literária que mudou o cinema, o público e a crítica.
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Psicose (1960) |
Psicose é um filme maravilhoso. Eu sei, não dá pra aceitar a frase
como síntese de crítica, mas poderia parar por aí e pedir pra verem o filme.
Hitchcock conseguiu fazer uma obra para pessoas do cinema, que analisam,
vivem, trabalham no ramo e ainda conquistou o público, controlando suas emoções
num crescente até o final, com uma última cena perversa e
sedutora ao mesmo tempo.
Assisti novamente esta semana. Tinha
visto algumas vezes e, apesar de gostar muito, não é meu preferido – fico entre
Janela Indiscreta (1954) e Os Pássaros (1963). Depois de reler Hitchcock/Truffaut, relembrei dos detalhes da produção, o cuidado e a inteligência por trás de tudo.
Rodado com 800 mil dólares e tendo retorno (dados de 1967), de
18 milhões (hoje: 50 milhões), é um dos mais rentáveis já feitos pelo diretor. A questão não é
sobre o dinheiro, mas sobre o sucesso de um filme, em que a cena mais emblemática
acontece aos 40 minutos e ainda assim, ninguém sai da sala até o filme acabar. E olha que a maioria das pessoas já sabia o que ia acontecer – e Hitchcock ainda os proibiu de
entrar nas sessões depois do filme iniciado.
O segredo está justamente em sua
construção. Analisando a estrutura do roteiro, descobrimos a relevância da obra
que parte de uma história simples, com personagens que, à primeira vista, não
nos conquistam. Não queremos que Marion seja pega, mas também não somos
apaixonados por ela. Não queremos que o assassino seja descoberto, achamos que sabemos quem ele é, mas fica aquela dúvida, inclusive sobre a qualidade da atuação de Anthony Perkins. Revendo com calma, amaremos aquele
sorriso para sempre. Independentemente da nossa pouca relação com os
protagonistas e seus coadjuvantes, e, mesmo que todos os espectadores tenham ido
ver o filme pela cena do chuveiro, ela não é ponto alto da trama.
Para quem não viu, o filme conta a
história de Marion Crane (Janet Leigh), que rouba de seu chefe 40 mil dólares e foge. Para
passar uma noite longe de suspeitas e descansar, se hospeda no Bates
Motel, um hotel de beira de uma estrada secundária, quase abandonado. Lá, conhece o
proprietário Norman Bates (Anthony Perkins) e é assassinada. A partir disso, a
história se desenvolve num ritmo tal, que outras cenas também ficarão em nossas
mentes para toda a eternidade, consolidando o status de obra-prima.
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Marion Crane (Janet Leigh) e a cena do chuveiro |
Com dois acordes de Bernard Herrmann – compositor das trilhas de Hitchcock – nunca mais conseguiremos tomar banho de chuveiro tranquilos com a cortina fechada. Sempre trancaremos a porta do banheiro e checaremos uma vez mais, como quem não quer nada. Esta sequência foi rodada em uma semana e fizeram setenta posições de câmera para seus 45 segundos finais. Hitchcock sempre fez uso de storyboards e era obcecado pelo controle do que fazia, de tal forma que preferia recriar ambientes externos inteiros a fechar ruas, preocupado com os imprevistos. Da mesma forma, quase não permitia que os atores saíssem do roteiro ou improvisassem – era conhecido por ser linha dura, fazendo as atrizes sofrerem com seus detalhes minuciosos.
Como O Exorcista (1973), que é assustador por sua invocação do mal e insistir
na teoria do diabo no corpo em uma menina inocente, criando terror em nós por
muitos anos, Psicose marca pela
crueza do assassinato, contrastando com a natureza pacífica de quem o comete. Não há
tanto sangue, mas uma estranheza na relação de Norman com a mãe, no hotel vazio, nas
aves empalhadas na sala da recepção. Enquanto isso, a
montagem calculada com a trilha sonora, atingindo seu ápice nos crimes e premeditações (as trilhas dos filmes de Hitchcock por si só, já valem um estudo), as tentativas
de defesa das vítimas e o assassino como uma sombra de um personagem que só
ouvimos a voz sem conhecer o rosto, são de uma violência que nos atinge muito
mais do que os filmes policiais de hoje. Talvez o
segredo esteja aí: este filme nos faz imaginar, nos coloca no lugar de Marion, como possíveis vítimas de um atentado que
nos toma de assalto e permanece em nós.
Truffaut amava Hitchcock. Como eu, considerava o diretor um mestre mas, por fazer
filmes de suspense, o diretor inglês não recebia o crédito da crítica, que tem predileção por filmes não comerciais.
Assim, além de conhecer em detalhes o pensamento criativo daquele, Truffaut
queria justificar sua relevância para a cultura cinematográfica, mostrando que
o lucro pode estar relacionado com uma preocupação estética, de linguagem e
forma. Segundo Antoine de Baecque em seu Cinefilia
(outro livro maravilhoso, sobre a Cinefilia na França do pós-guerra), Truffaut
buscava quase a fórceps, com argumentos e fotogramas quadro a quadro de
algumas sequências, deixar claro para o leitor que vale a pena
dedicar um tempo para entender a grandiosidade da filmografia de um diretor que gosta de aparecer (e aparece mesmo, em todos os seus filmes, olha ele aí).
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Hitchcock em Psicose |
O mestre não conseguiu dobrar a crítica com Psicose, mas sente um orgulho imenso do resultado: em Psicose, o tema me importa pouco, o que me importa é que a montagem dos fragmentos do filme, a fotografia, a trilha sonora e tudo o que é puramente técnico conseguiram arrancar berros do público. E agora, ele dá o golpe de misericórdia: creio que para nós é uma grande satisfação usar a arte cinematográfica para criar uma emoção de massa. (...) Não foi uma mensagem que intrigou o público. Não foi uma grande interpretação que transtornou o público. Não era um romance muito apreciado que cativou o público. O que emocionou o público foi o filme puro.
Por conjugar uma técnica
fascinante a um roteiro bem amarrado, os trabalhadores do cinema são também
aficionados por ele, que insiste: é
um filme que pertence a nós, cineastas, a você e a mim, mais do que todos os
filmes que fiz (porque ali era possível falar tecnicamente, discutir
abordagens, movimentos de câmera, ângulos e corte, era uma conversa
entre diretores). Eu não conseguiria
ter com ninguém uma verdadeira discussão sobre esse filme nos termos que
estamos empregando neste momento. As pessoas dirão: “Não era uma coisa para se
filmar, o tema era horroroso, os protagonistas pequenos, não havia personagens.”
Claro, mas o modo de construir a
história e de contá-la levou o público a reagir de um modo emocional. É
como aprendemos na escola: o que importa é a forma.
O encantamento com o filme é tal –
e nem tratamos da temática voyeur, perversão, doença mental, moral, mulher independente nos anos 60, a primeira sequência do filme, etc
– que vimos uma refilmagem supostamente plano-a-plano – incipiente – de Gus Van
Sant em 1998 e agora, lançado em 2012, uma ficção também fraca sobre os bastidores
da produção do clássico, intitulada Hitchcock.
O canal Universal lançou em 2013, Bates Motel, série sobre a adolescência de Norman e a relação com a mãe. Esta é mais interessante do que
os filmes, mas nenhum se compara ao clássico. O fato é que Psicose despertou tantos e diversos olhares que se tornou uma
referência para o gênero, é homenageado em não sei quantos filmes, artigos, ensaios fotográficos e figura em qualquer lista de melhores do mundo (como Os Incompreendidos, de Truffaut). É, portanto, imperdível, e um grande programa.
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Anthony Perkins como Norman Bates |
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