Um reencontro. O clichê do bom cinema
bate forte, daquela saudade de rever um amigo de longa data que, depois de
alguns desentendimentos, se reconhece e se percebe o fim de uma pequena briga e
da imensa falta que se fez a partir dela. Assim foi Dor e Glória, de Pedro Almodóvar, em cartaz nos cinemas.
Um homem atormentado com os incômodos das inércias e traumas da idade. As dores físicas de todo o tipo que passamos a
conhecer depois de décadas vividas, das experiências sentidas, perdidas,
escondidas nos armários entreabertos da memória e do corpo. Salvador (Antonio Banderas) é
esse homem, diretor e roteirista de cinema, um tanto escritor, que vive entre os termos do título do filme, parado no tempo, sem perspectiva de um movimento saudável
e perene. Enquanto revive sua trajetória a partir do convite da Cinemateca para
reexibir sua maior obra, se depara com um vai e vem de histórias entrelaçadas
que nos conta quem é esse homem, como se formou, educou, relacionou e que sobra
é essa que se exibe, sombra solitária em uma casa de artista, cheia de obras de
arte e vazia de vida, como um museu com as cores do diretor espanhol.
O verde e o vermelho escorrem
pela tela com as nuances e os tons fortes que marcam toda a sua filmografia e
fotografia vibrantes. Os enquadramentos da mesa onde escreve lembram Julieta, os isolamentos dos protagonistas nos dois filmes também. O
reconhecimento de um história vivida nos olhos de um homem se vê aqui e em Fale com Ela. O elenco familiar a todos
nós, a mãe que canta, uma Penélope Cruz que abre o filme nos lembrando Volver naquela cena maravilhosa e
dublada - linda toda a vida mesmo assim. O humor ácido que percorre toda a sua
obra, o desejo que escorre de todos os seus filmes e neste, em uma sequência inesquecível e que nos
confunde os sentimentos, com Federico (Leonardo Sbaraglia), a infância e
recortes biográficos contados de uma outra forma, além de Má Educação. Os padres desenganados. Está tudo aqui.
Estudando literatura e cinema, duas artes que carecem do desenvolvimento de histórias, narrativas, acabamos encontrando um lugar comum em nossas próprias produções. Alguns professores já nos disseram que um indivíduo, qualquer que seja, se afeiçoa e aperfeiçoa nos mesmos assuntos, provavelmente por toda a sua vida. Não é difícil entender, ao passo que também não é tão óbvio quanto parece, quando assim posto. Os interesses podem nos ser múltiplos, mas a nossa produção acaba pairando sobre os mesmos temas. Assim acontece com um reles mortal, tanto quanto com o diretor espanhol. Ao falar de si - em seus filmes há sempre e cada vez mais essa marca - acaba falando um pouco de todos nós; em sua forma de contar de si, nos aproximamos e encontramos ressonância em nossas vidas. Talvez daí e assim, o interesse sobre suas obras seja tão grande - além claro, de sua qualidade artística inquestionável.
Almodóvar retoma sua marca autobiográfica em um filme que parece remeter tanto o presente quanto alguns momentos ainda não abordados de sua história, os primeiros desejos, as descobertas da infância, a relação com a mãe e uma ausência progressiva do pai. A falta de dinheiro e as soluções para a moradia alimentam a curiosidade sobre a vida real do diretor, se é parte de ficção, fantasia, o que se conta ou se de fato aconteceu, uma casa caverna, romantizada sob cores, do olhar da criança e da mãe que luta para embelezar a pobreza rude. O filme percorre uma narrativa criativa e inesperada entre flashbacks e metalinguagem, de retomada de relações e acordos com o passado sem tanta racionalização, mas sob os efeitos de um presente em que se começam a propor mudanças. É o fim de uma inércia por uma necessidade de viver, simplesmente.
0 Comentários