Narrativa e trajetória
“Não sei do que falar… Da morte ou do amor? Ou é a
mesma coisa? Do quê?
Estávamos casados havia pouco tempo. Ainda
andávamos na rua de mãos dadas, mesmo quando entrávamos nas lojas. Sempre
juntos. Eu dizia a ele ‘eu te amo’. Mas ainda não sabia o quanto o amava. Nem
imaginava… Vivíamos numa residência da unidade dos bombeiros, onde ele
servia.”[1]
Assim começa o primeiro relato no livro de Svetlana
Aleksiévitch, Vozes de Tchernóbil, sobre o acidente nuclear na usina de
Chernobyl em abril de 1986. O livro é permeado de conversas, encontros que a
autora teve com pessoas que viveram e/ou de alguma maneira se envolveram com o
evento. Os relatos orais foram trazidos para a versão escrita em detalhes, sem
suprimir dolorosos e descritivos momentos. Nossa imaginação, como se lêssemos
qualquer outra obra, nos inunda de imagens, não apenas aquelas já conhecidas
por revistas e jornais, mas também por outra que criamos a partir do que lemos.
Este ano, a HBO lançou Chernobyl, uma série em
cinco episódios sobre o mesmo assunto. A produção, em pouquíssimo tempo,
alcançou as melhores e mais amplas observações de críticos e espectadores. É
hoje, a série mais bem avaliada de todos os tempos e há mais do que um motivo
para isso. A qualidade da produção é inquestionável. Como no livro da autora
bielorrussa e prêmio Nobel, os episódios da versão televisiva são permeados de
grandes personagens e, mesmo tendo um protagonista, há um peso e dramaticidade
em outros para entender o contexto e alcance da tragédia.
Liudmila Ignátienko é a voz que conta a história do
primeiro parágrafo deste texto. Junto com seu marido, eles também são parte da
trama ficcional da HBO. Seu marido, bombeiro, foi chamado à noite para
extinguir um incêndio na usina. Sem mais informações, segue para o local com as
roupas para atacar um evento comum e lá se depara com algo inominável do qual
tinha poucas informações. É o primeiro e mais sofrido relato do livro. Na
versão audiovisual, os personagens aparecem em casa, juntos, à noite. O
telefone toca, ele atende e é chamado. A esposa lhe pede que não vá, ele
precisa ir. Ela olha pela janela, uma fumaça ao longe na direção da usina, de
cor azulada. Estranha aquele brilho bonito e diferente — não pode ser um
incêndio comum. Ali era o início do fim daquela família.
“Sete horas… às sete horas me avisaram que ele
estava no hospital. Corri até lá, mas havia um cordão de policiais em torno do
prédio, ninguém passava. As ambulâncias chegavam e partiam. Os policiais
gritavam: ‘os carros estão com radiação, não se aproximem’.” [2]
No livro e na série, Liudmila segue uma via crucis
para ver e ficar com seu marido, altamente contaminado. Nós, espectadores e
leitores estamos presos à essa história única, de um casal vítima de um
acidente imenso. Mas há outros personagens.
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Liudmila e Liudmila (Jessie Buckley) |
A série abre com uma cena triste, de preparação de
um suicídio. Um homem, Valery Legasov (Jared Harris), físico nuclear, está
prestes a acabar com sua vida. Ele é chamado para atender, em um flashback, a
uma conversa com dirigentes do governo e, então, ao longo da narrativa, se
torna um consultor-arquiteto da solução para estancar a emissão de radiação que
logo alcançará outros países da Europa. A série avança com marcações de tempo
tomando como referência o acidente, e conhecemos Ulana Khomiuk (Emily Watson),
a única personagem totalmente ficcional da obra. Ela é uma física nuclear em
Moscou e representa todos os outros físicos e químicos da vida real que
colaboraram com Legasov na busca pela redução de danos da tragédia. Junto a
eles, vemos a história da equipe responsável por executar animais que ficaram
soltos à míngua quando Prypiat é evacuada. Como uma imensa tragédia, não há
nada feliz e esse peso carregamos até depois do final da série.
Em cada episódio há um foco narrativo; o acidente e
o reflexo no povo, a história do bombeiro e a política internacional em finais
de Guerra Fria, os executores de animais, a solução encontrada para o acidente,
o que motivou o acidente.
“(…)é também questão de desejo e, portanto, de
posição simbólica. Nos termos de Émile Benveniste, o filme tradicional é
proposto como história e não como discurso. Contudo, ele é um discurso se nos
referirmos às intenções do cineasta, às influências que exerce sobre o público
e etc.; mas o específico deste discurso, e o próprio princípio de sua eficácia
como discurso, é justamente cancelar as marcas de enunciação e de mascarar-se
como estória. (Metz, 1977, 133.)”[3]
Antonio Costa cita Metz nos informando sobre
discurso, narrativa e objetivo, indução. Em um projeto audiovisual, é preciso
‘iludir’ o espectador, oferecendo uma narrativa que, quando bem proposta, mascara
o discurso, que vem como se estivesse por trás de uma névoa, do entretenimento.
O conteúdo da mensagem que o cineasta deseja transmitir, o discurso, se insere
em nós, espectadores, de forma sutil e sua eficácia está em como promove isso.
“Perguntei:
‘Vássienka, o que é que eu faço?’
‘Vá embora daqui! Vá embora! Você vai ter um
filho.’
Eu estava grávida. Mas como deixá-lo? Ele
suplicava:
‘Vá embora! Salve a criança!’
‘Primeiro eu vou te trazer leite, depois
decidimos’.”[4]
No trecho acima, de Svetlana, Liudmila descreve o
diálogo que teve com seu marido quando se encontraram horas depois do acidente.
Já doente grave no hospital e ainda lúcido, ele lhe pede que vá embora, que ela
está grávida. Ela, mulher jovem, aguardando o primeiro filho do homem que ama
mais do que tudo na vida, não consegue se ver sem ele e trata de tentar
remediar seu sofrimento, sem prever as consequências disso. Esse trecho está no
início do relato, no livro. É o início de sua tragédia pessoal, que nos prende
até o fim. Já sabemos que ela está grávida, se contaminando.
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Svetlana Aleksiévitch |
Por ser parte de relato oral, fica subentendido que
a autora não alterou e nem poderia, a ordem dos acontecimentos que estão sendo
contados. É o alavancar da tragédia, mais um ponto de tensão em uma história
difícil. Caso o livro se pretendesse, como na série, como uma obra ficcional,
um retrato criado de um evento real, a fim de intensificar a emoção,
postergaria a informação da gravidez.
De volta à série, saberemos no terceiro ou quarto
episódio que ela está grávida — após percorrer e passar dias no hospital ao
lado do marido. Tendo lido o livro antes de ver a série, o impacto é menor e a
estratégia do diretor em manter a tensão narrativa se vê mais explicitamente,
ainda que bem executada. Para um espectador sem conhecimento da história de
Liudmila, é um sofrimento sem fim e descoberto depois, intensifica o drama.
Cinema é manipulação, construção de tensão e emoção no espectador. O corpo do
texto de Liudmila e Svetlana estão ali, o conteúdo permaneceu, a ordem foi
alterada, adaptada para aprimorar em roteiro, texto fílmico a ser exposto
enquanto imagem editada para a tela. É parte da jornada do herói, como um
percalço em sua trajetória a fim de promover sua transformação final.
Em uma adaptação do literário para o audiovisual é
preciso contrair parte da trama e adaptar a linguagem, em benefício da
narrativa. Em uma série, é fundamental reter a atenção do espectador por
semanas, é imprescindível criar gatilhos nas múltiplas histórias, desenvolvendo
tanto uma empatia pelos personagens, quanto a curiosidade suspensa sobre suas
trajetórias.
Objetivos
Todo produto artístico é imbuído de ideologia. Em
polos opostos do globo, temos estas duas peças, de linguagens diferentes,
tratando do mesmo tema — também com distintas abordagens e em diferentes
décadas. O objetivo aqui, não é mera comparação. Chernobyl da HBO, usou como
referência, personagens e histórias que Svetlana trouxe em seu livro lançado em
1997.
A estrutura narrativa de seus livros parte sempre
de uma busca de informações por quem viveu determinado período ou evento
histórico em torno do que foi a União Soviética. Vozes de Tchernóbil foi seu
terceiro livro, o primeiro focando no acidente. Tratado a partir de entrevistas
com pessoas envolvidas no evento, quase deixa passar uma ideia de intenção com
aquele produto, além da exposição dos relatos sobre o tema, como uma
alternativa de se fazer saber a história sem buscar o ‘relato oficial’ de
livros didáticos. O relato aqui é quase íntimo, certamente pessoal e isso,
paradoxalmente, o torna ‘mais oficial’, sem hastear gratuitamente uma bandeira,
focando na descrição dos fatos pelas pessoas que viveram o que contam.
Acompanhando a trajetória literária da autora,
contudo, há uma pesquisa, uma insistência no tema que não é gratuita. Tratar da
questão soviética pode ser sua busca por resgatar as histórias da História. É
conhecer pelas pessoas, suas vidas e a vida de todos enquanto povo, nação ou
nações, o regime que tentou ser a forma perfeita de viver em sociedade e omitia
para os seus e para o mundo o que carecia de sentido e eficiência. O fracasso
da União Soviética é mais complexo e há um sem fim de explicações para tanto.
Com obras como as da autora, há uma aproximação com as diferentes pessoas —
homens, mulheres, crianças — que viveram o período, como o perceberam e
sentiram. Sem obras assim, não teremos testemunhos, apenas dados.
“Destino é a vida de um homem, história é a vida de
todos nós. Eu quero narrar a história de forma a não perder de vista o destino
de nenhum homem.
Antes de tudo, em Tchernóbil se recorda a vida
‘depois de tudo’: objetos sem o homem, paisagem sem o homem. Estradas para
lugar nenhum, cabos para parte alguma. Você se pergunta o que é isso: passado
ou futuro?
Algumas vezes, parece que estou escrevendo o
futuro…”[5]
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locação da série de Chernobyl, HBO |
A série. Produção americana. Estadunidense. Grande,
atores de renome. Ainda assim, ao assistir essa imensa obra, nos atemos às
minúcias da tragédia, a ver se o diretor, roteirista, equipe de produção,
diretor de arte, editores de som e imagem, conseguiram construir uma obra que
nos parece real, fiel ao acontecido. Como ser fidedigno a um desastre ocorrido
trinta e três anos atrás do outro lado do mundo, mal divulgado, deturpado e em
fins de Guerra Fria?
Em artigos de notícias, não faltam informações
sobre como a série foi imprecisa, exagerada e falha em pesquisa científica[6]
para confirmar as informações aterrorizantes ali expostas. De jornalista
russo[7] a uma hipótese daquela nação realizar uma série em resposta à versão
americana[8], há quem julgue até o livro de Svetlana como insuficiente ou
incorreto. O fato é que, enquanto produto de entretenimento, a produção da HBO
funciona muito bem e isso talvez não seja um problema.
O que se vê na série é esse suposto retrato
ficcional, se se pode usar essa combinação, clássico como uma jornada do herói,
fiel às estruturas de roteiro preconizadas pela indústria. Bons atores, boa
trama, excelente produção. O que se diz em oposição, e aí é que está a questão,
é a suposta ausência de pesquisa científica sobre o acidente, os efeitos da
radiação, os números de vítimas e alcance da tragédia — como se tudo o que foi
exposto ali fosse um grande exagero. Como boa parte da produção audiovisual
americana, se criou um universo de tensão e pânico em torno de um dos maiores
medos da humanidade de todos os tempos: um desastre nuclear. Historicamente, já
passamos por alguns e a marca é indelével.
A ideologia está também aqui. Mais presente, mais
forte do que no livro de nossa heroína bielorrussa, está a construção do medo,
do escancaramento de um sistema supostamente falho em todas as hierarquias, do
velho pânico da KGB. Ao ver a série, estamos tão concentrados na desgraça e em
como as vidas serão salvas e perdidas, que talvez isso nos distraia daquela
marca já descascada das paredes da memória, a quase jocosa ideologia binária
que sempre pôs e opôs na mesma sentença termos como Rússia (e/ou União
Soviética)e Estados Unidos.
Para além do contraste ideológico histórico entre
as nações, hoje um tanto mais diluído e menos polarizado do que antes, o que
interessa aqui é vislumbrar no discurso fílmico, entender qual é o objetivo por
trás de uma imensa empresa de comunicação e entretenimento, como a HBO, se
permitir ‘erros de cálculo’, em prol da emoção do entretenimento. Qual é o
objetivo? Ele já não foi alcançado?
Svetlana quer escrever para se entender enquanto
parte do que foi um país imenso, de como ele se reflete no povo hoje,
distribuído em não sei quantas nações e embates nacionalistas. Seus livros
tratam do passado e, como ela mesma diz, não seriam também um cintilar de luzes
do futuro? Einstein já diria que o tempo é uma ilusão.
Para o criador da série Craig Mazin e sua equipe,
nunca uma obra reteve tanto a audiência e alcançou o Olimpo de aceitação entre
a crítica e o espectador. As repercussões negativas e as polêmicas trouxeram à
tona assuntos como a energia nuclear, segurança e política internacional para o
debate público, primeiro como curiosidade, depois como um mobilizador
internacional de governos, mídia e comunidade científica. As discussões
atentaram tanto sobre o produto fílmico, quanto com relação ao conteúdo,
reacendendo questões sérias que permeiam a política internacional, a pesquisa e
o desenvolvimento científico, energias renováveis e limpas e a polarização
entre as nações. No fim das contas e em tempos de fake news, com redução dos
investimentos em educação, ciência e cultura por um lado e a insistente e
necessária checagem de fatos, persistência e teimosia da comunidade científica
do outro, a ideologia que habita o universo hollywoodiano e que se repete aqui
é tão óbvia — e ainda, correndo o risco de parecer ingênua na assertiva — que
dificilmente se torna algo a ser levado a sério ou como uma grande e indigesta
novidade. Aguardemos o retorno dos russos.
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Segundo sarcófago que isola o reator 4 instalado este ano e memorial em homenagem aos liquidadores. |
***
[1] ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil.
Companhia das Letras. São Paulo, 2015.
[2] ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil.
Companhia das Letras. São Paulo, 2015.
[3] COSTA, Antonio. Compreender o Cinema. Editora
Globo. São Paulo, 1989.
[4] ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil.
Companhia das Letras. São Paulo, 2015.
[5] ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Tchernóbil.
Companhia das Letras. São Paulo, 2015.
[6]
https://www.forbes.com/sites/jamesconca/2019/06/27/how-hbo-got-it-wrong-on-chernobyl/#7e1b47549ce8
Acessado em 21/07/2019.
[7]
https://revistaopera.com.br/2019/07/04/minha-chernobyl-e-a-versao-da-hbo/
Acessado em 21/07/2019.
[8]
https://www.theguardian.com/world/2019/jun/07/chernobyl-hbo-russian-tv-remake
Acessado em 21/07/2019.
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