Um diretor russo, um museu
francês, a segunda guerra. Aleksandr Sokurov retoma o tema da arte ao tratar do
Louvre, da ocupação alemã em Paris na Segunda Guerra Mundial em um filme
original e ousado.
Classificado como documentário, o
filme se enquadra no gênero e o transcende, para nosso benefício. Imagens de
arquivo de filmes de ficção e registros históricos, encenações, o próprio
diretor em cena conversando com um amigo, o capitão Dirk que está no meio de
uma tempestade no Atlântico, carregando contêineres com obras de arte. Sokurov
traz de volta um grande museu: se em 2002 ele fazia Arca Russa, um dos maiores filmes do mundo em um dos maiores
museus, o russo Hermitage, agora, em outra forma e linguagem nos apresenta o
Louvre, sua história, seu impacto e o tempo da arte ou a arte enquanto
permanência e relevância.
Não é um filme para ver sem saber
do que se trata, ainda que seja uma grata surpresa. É uma forma de refletir
sobre arte e história a partir de pontuações do próprio diretor, em uma
narração híbrida em toda a duração. Descobrimos a história do Louvre a partir
de Napoleão, seu fundador e mantenedor, cujo objetivo era realizar a maior
coleção de obras de arte do mundo com seus tesouros de guerra. Enquanto
imperador, cada vitória era um saque, troféus de nações vencidas. Entre 1940 e
1944, Hitler ocupa militarmente Paris, que se torna uma cidade aberta e a
França, um Estado dividido. Assim se evitou a destruição da metrópole e se
conquistou uma paz a contragosto, pelo bem geral. O Louvre foi esvaziado, suas
obras escondidas em castelos e dois homens, o diretor francês do museu, Jacques
Jaujard e agora o co-diretor alemão, Franz Graf Wolff-Metternich se tornaram
responsáveis e, segundo Sokurov, parceiros na proteção das valiosas e
remanescentes obras. Sem eles, não haveria a proteção ao museu e suas obras e,
como aconteceu em outras cidades europeias bombardeadas, perderia seu acervo e tantas vidas, para sempre.
Mas, mais do que isso, o diretor
provoca, instaura uma reflexão a partir da fragilidade e importância das obras
para o mundo, para o registro histórico e cultural humano. Seu amigo, o Capitão
Dirk segue em alto mar sob grande risco de perder os contêineres que aceitou
transportar. Ali, ficamos tensos quase esperando uma tragédia dupla: da vida
dos marinheiros e de obras que nem sabemos quais são, mas estimamos seu valor a
partir do tenso diálogo entre os amigos. É na casa de Sokurov que isso tudo
acontece, em uma comunicação via internet, quando possível. Não temos opção,
como o diretor e o capitão, estamos à mercê do tempo, agora uma força da
natureza e não humana, mas com a mesma capacidade destruidora, como a que
provocamos com as guerras.

São monumentos culturais imensos em todos os sentidos, são
obras internacionais todas bem cuidadas em um grande espaço e em algum momento
pensamos se elas não deveriam voltar a suas antigas nações, aos seus berços e
reafirmar sua cultura ou se devemos apenas aceitar, esquecer fronteiras e
agradecer que estão garantidas para visitação pública, quando estivermos
passeando pelos arredores. Não há como saber o que aconteceria a muitas destas
obras se não estivessem sob esse teto privilegiado, se peças de muitos séculos
atrás, milênios quiçá, teriam seu registro e espaço ou se se perderiam, apenas
porque é impossível manter toda a história de todas as culturas.
A arte que vemos é um fragmento
de cultura e humanidade em um período histórico, um índice e representação do que houve, do que se foi e referência para o futuro. O
Louvre é um dos museus que garante essa permanência, conquistada e mantida por
séculos. Ao mesmo tempo, é um imenso galpão de saques, se pensarmos em cada
conquista de guerra, em cada cidade devastada ao longo da História. Não deixa
de ser a manutenção de um passado que privilegia quem vence batalhas e não é
à toa que o Napoleão de Sokurov instaura a arte como um dos motivos para a
guerra.
O diretor cria uma caleidoscópio
com tantas informações quanto as expostas no Hermitage em Arca Russa, outro filme para ser revisto: em uma só vez é
impossível apreender tudo, mas o constrói bem, com retalhos que se unem por
linhas pensamento firmadas no contexto histórico. Há o fantasma literal da
revolução francesa, Marianne, que encontra Napoleão e juntos se perdem nos corredores e
salões, há os diretores de cultura, rivais em guerra, unidos pela defesa e sobrevivência do
museu e assim, da arte, há a fragilidade do tempo e desta própria permanência e
relevância frente à vida: o que é mais importante, a vida humana ou o registro
dela? A montagem por vezes se perde com tantas vias a percorrer, mas não é de
todo problemático. Aos poucos nos acostumamos com este percurso e somos levados
pela mão pelo diretor, que parece tão confuso quanto nós – por isso tantas
ramificações na construção fílmica – sobre que destino terá aquilo tudo. Ainda
assim, seu discurso se mantém firme e agora esperamos que ele invada outro
grande museu e nos conte mais sobre ele.
Sokurov promove uma viagem única
pelo Louvre, por fim, de uma forma que o melhor guia turístico não daria conta,
ou qualquer pesquisa na internet, ou um passeio ao vivo. Agora, na próxima
visita, há mais e mais referências, uma vontade de sentar e discutir com o
diretor como foi seu processo de construção neste filme híbrido, completo,
confuso, inteligente, delicioso e reflexivo. Imperdível para os amantes de artes e museus, de história
mundial, de memória e permanência das obras de arte, da cultura e sua
relevância para o futuro.
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