Esta semana estreia nos cinemas Janis: little girl blue, a mais nova
biografia sobre Janis Joplin, dirigida por Amy Berg. Será a terceira sobre uma
cantora mulher, mais um ícone da música internacional em dois anos, se
lembrarmos de What Happened, Miss Simone?
(2015) e Amy (2015). Há claras
semelhanças entre os filmes e é nítida, da mesma forma, sua relevância para a
cultura musical, ainda que no trato de seus personagens haja alguns
questionamentos.
Para quem acompanhou ou sabe um
pouco da vida e obra de Janis Joplin, não há grandes surpresas. Os depoimentos
dos familiares e amigos corroboram muito do que se encontra em uma pesquisa na
internet e a graça sempre estará nas imagens em que nossa musa do blues aparece
cantando, vivendo e falando, por isso a importância de vê-lo nos cinemas. A
dosagem entre as falas de Janis e sobre Janis é um exemplo claro do
documentário biográfico tradicional, em que se fala do outro, sobre o outro,
acima da voz do outro e é irônico pensar que com estas três cantoras aconteceu
o mesmo: se falou tanto sobre e acima delas, que pouco restou de suas (imensas)
vozes para ouvirmos.
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Janis e a Big Brother and the Holding Company |
Janis Joplin foi – e é, levando
em conta que continuamos ouvindo sua voz – uma das maiores cantoras de todos os
tempos e essa qualidade surgiu ainda muito nova, entrando nos vinte anos, em
plena década de 60 quando se muda para São Francisco. Era uma libertação da
opressão de sua cidade com seu comportamento machista e castrador –
particularmente para a mulher – era o embrião da guerra do Vietnã, era a Guerra
Fria, eram os hippies e a questão racial, era a experimentação das drogas, era
o auge da cultura musical no país e isso tudo, em sua própria formação enquanto
mulher com sua sexualidade também diversa de seus conterrâneos, enquanto criação
de uma identidade e reconhecimento no mundo. Isso tudo com uma grande voz e
talento natos, uma sensibilidade absurda e uma fome de viver. Essa sempre foi a
impressão maior sobre a cantora que, como Amy Winehouse – não há como deixar de
incluir Jimmy Hendrix e Jim Morrison – fechou seu ciclo cedo demais, por um
acidente de percurso. O filme encerra e nos deixa com um aperto no peito de que
tudo poderia ter dado certo, de que ela duraria mais tempo, de que sequer foi
suicídio. Saímos com este aperto, como se uma vida de possíveis alegrias e grandes
músicas e performances de uma mulher doce, inteligente, sensível e brilhante
havia sido interrompida bruscamente.
Howard Alk fez a primeira biografia sobre a cantora em 1974, Janis – the way she was. Neste, ao contrário do filme de Amy Berg, não há qualquer depoimento que não o seu. Todos são tirados de entrevistas e shows e vemos muito de suas performances, as maiores já feitas, os melhores shows, outro deleite. Não há entrevistas fora de contexto e a duração delas é ainda maior, nos fazendo conhecer um pouco mais sobre nossa musa. É interessante perceber a diferença no trato das sequências e imagens, já que os dois filmes utilizam o mesmo arquivo. Em 74, o que vemos é resultado de uma grande influência do cinema direto, aquela forma francesa de filmar com a menor interferência possível (graças aos novos e leves equipamentos) cujos mestres seriam Edgar Morin e Jean Rouch. Nos Estados Unidos os destaques ficam para Rihard Leacock (inglês, mas com várias produções americanas), Robert Drew, Albert Maysles e D.A. Pennebaker. Este último acompanhou os músicos desta geração e fez um documentário sobre o primeiro festival de música em que Janis se apresentou com a Big Brother and the Holding Company em Monterey (1967) e é um dos entrevistados no novo filme, aos 90 anos. Ainda que o documentário anterior indicado ao Globo de Ouro se perca nos últimos minutos em uma apresentação fotográfica – homenagem póstuma recente – o fato de a conseguirmos ouvir em grandes dimensões é um bônus.
Não se pode dar voz aos mortos e
com isso, o artifício do outro parece ser a solução para criar uma linha
narrativa que preencha as lacunas da edição. Aqui esta intercalação acontece de
tempos em tempos e por ver as mesmas sequências nos dois filmes, há que se
perguntar sobre o volume do material coletado. Com registros de 50 anos atrás,
talvez não houvesse diversidade suficiente, o que não causa prejuízo, já que o
uso das conversas com a Kozmic Blues Band
e a Big Brother and the Holding Company,
cumprem um pouco do prometido. Além deles, outros homens passaram por sua vida
e deixaram sua contribuição ao filme, como seu último grande amor – este, de
fato, lhe dando o devido crédito. Não vemos muito sobre os relacionamentos de
Janis com mulheres, muito sutilmente parece não se dar a importância ou espaço
para estes envolvimentos. Outros depoimentos soam ácidos a ouvidos mais
sensíveis, não dando a correta dimensão ao relatar possíveis encontros com a
cantora, não se sabe por mágoa ou pouco caso. Não fica claro o porquê, além de
criar um incômodo em quem assiste com mais atenção.
Não há como se definir de que
forma o entrevistado falará sobre seu objeto, mas objetificação em si seria o
problema maior. No fim, ainda que seja uma obra gostosa de ver, há menos música
e performance do que o esperado, à exceção da magnífica cena em que a banda
discute no estúdio as variações sobre Summertime,
vemos suas interpretações e temos uma visão da cantora como uma profissional
que entende de seu trabalho, que sabe o que busca e a melhor forma de fazê-lo. É
de cenas assim que carece a obra, tanto quanto imagens da cantora com outros
artistas, como vemos uma pincelada em Woodstock e em um trem, a caminho de um
festival no Canadá, com o Grateful Dead. Uma tentativa tardia e confusa está nos
créditos finais, em depoimentos curtos que não aparecem durante o filme – e
entende-se o porquê – mas que de alguma forma, funcionam como uma curiosidade,
como um extra do dvd.
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Janis e a Kozmic Blues Band |
Enquanto o filme de 74 parece ser
uma colagem de registros quase brutos de episódios da vida da cantora, o Little Girl é coeso em sua proposta. Há
o equilíbrio narrativo e o filme funciona como os demais, sobre Amy e Nina
Simone, resgatando nosso amor por estes ícones, nos fazendo buscar em nossos
arquivos o momento em que as conhecemos e partilhamos da experiência
transformadora que é ouvi-las, aqui até de forma ainda mais sensível do que nos
das outras cantoras. De alguma maneira, há sempre mais para descobrir sobre
estas grandes mulheres e suas personalidades complexas, para além das imagens
de mídia. Este filme ensaia isso e faz bem, ainda que se comprometa em alguns
momentos, manteve um cuidado em não classificá-la como uma garota problema, em
não queimar sua imagem como as de uma
possível corrosão física por uso de drogas, como apresentadas em Amy e um pouco menos em Nina, mas buscando uma sensibilidade e
sua subjetividade nas cartas. É evidente que há de se fazer um comparativo com
as biografias de artistas masculinos e entender do que se falava sobre eles, se
se pontuam envolvimentos amorosos questões pessoais para além do talento. Em
filmes sobre o outro, é fácil escavar o passado, difícil é construir uma
dimensão humana, tridimensional e dar uma percepção mais ampla do que realmente
importa para o público: sua qualidade, conhecimento e sensibilidade artística. Aqui,
saímos com um pouco mais de Janis Joplin, com vontade de retomar seus discos e
capturar uma fração dessa imensa sensibilidade e blues que levava dentro de si e que nos rasga e alenta por dentro
com sua inigualável voz.
4 Comentários
Admito que nunca soube muito sobre a vida de Janis Joplin, só algumas pequenas curiosidades que a gente sempre ouve fora de contexto e as vezes não dá muito valor ao que realmente significam, tipo “ahn, ela morreu aos 27 anos” ou “uma vez ela foi eleita o homem mais feio da faculdade”. Sempre tinha visto Janis como ícone, nunca como uma pessoa. Gostei particularmente de ver essa incessante busca de Janis em permanecer verdadeira a quem ela era, algo que parece faltar nos artistas de hoje.
ResponderExcluirConcordo com tudo que você disse. Sempre gosto de ler suas críticas porque me fazem pensar mais profundamente sobre alguns temas e algumas escolhas do diretor (enquanto normalmente eu me deixo levar pela emoção provocada pelo filme sem pensar muito a respeito).
Concordo ainda com o que você disse: “Outros depoimentos soam ácidos a ouvidos mais sensíveis, não dando a correta dimensão ao relatar possíveis encontros com a cantora, não se sabe por mágoa ou pouco caso. Não fica claro o porquê, além de criar um incômodo em quem assiste com mais atenção.” – também me causou estranheza em ouvir esses relatos, mas fiquei me perguntando se não foi proposital, um mínimo fragmento pra nos ajudar a entender o que Janis provavelmente passava em seu dia-a-dia, em escalas muito maiores.
“É evidente que há de se fazer um comparativo com as biografias de artistas masculinos e entender do que se falava sobre eles, se se pontuam envolvimentos amorosos questões pessoais para além do talento.” – Fiquei pensando nos documentários de artistas masculinos que vi no passado: Wilson Simonal, Arnaldo Baptista, David Bowie, The Who, George Harrison e The Beatles. Me parece que sempre se trata de temas pessoais quando eles interferem diretamente na música, mas geralmente não muito voltados a questões amorosas... Talvez Loki seja o que mais lida com isso, mas apresenta ainda muitas outras dimensões a Arnaldo Baptista.
Enfim, já falei demais. E certeza de que, depois de ler essa crítica, já sei que o filme da noite de hoje será What Happened, Miss Simone?
Oi Leu, que ótimo seu comentário! Me conta depois o que achou de Miss Simone, falei dele por aqui também. Vi Loki e também me lembro de uma visão íntima, mas que retoma o profissional. Não sei, é realmente uma questão de analisar, tentar entender as diferenças (se é que existem) ou se foi uma coincidência nestes filmes. Vou buscar as biografias que você viu, para fazer esse paralelo com suas referências. =*
ExcluirTati, em todos documentários acredito que procurar imagem de apoio seja realmente um grande desafio, ainda mais quando a personagem é alguém tão icônica e que faleceu há quase 50 anos. É evidente a carência de material. E acho que justamente esse contraponto entre contar a história e expor a Janis que não ficou muito equilibrado no filme. Como você disse, as maiores "revelações" do lado Janis humano (o qual a narrativa nos induz a interpretar que durante a fama ela experimentava quando voltava para casa sozinha, depois de um show, diferente dos homens da sua banda) estão em fotos apresentadas sempre com um invés cômico ou sexual. Também senti um certo constrangimento desse enfrentamento entre o comportamento da pequena Janis e sua família tradicional dos bons costumes, relatado por seus irmãos. A passagem no Brasil, que até onde eu sabia tinha sido algo mais impactante na carreira e vida pessoal da cantora, serviu de mero cenário para um triângulo amoroso frustrado entre a Janis, o namorado e a heroína. Inclusive considero pontos fortes da narrativa seu depoimento e do apresentador, confuso entre o que aconteceu e o que podia ter acontecido, uma ilusão parecida com a que tomou conta da vida da Janis após o sucessos. Claro que o ponto mais alto do filme são as interpretações da Cat Power, de cartas das quais ela nunca leu as respostas. E retomando às imagens de apoio, sobraram caretices com as imagens de trem. Janis merecia mais blues, mais coragem e menos trilhos de trem.
ResponderExcluirÉ isso mesmo! Concordo plenamente com você, Camis, por isso é que vou buscar os filmes que tratam de biografias masculinas, para checar essa diferenciação. É claro que as biografias acabam construindo um personagem muito com base no que já foi exposto na mídia e no caso da mulher, sempre envolvem as questões amorosas e os padrões sociais como relevantes em detrimento do que as tornou célebres na primeira instância. Poderia ter sido melhor sim, sem dúvida, se tivéssemos mais de Janis mesmo, mais de sua carreira, mais cenas como a sequência de Summertime, por exemplo. Não é ruim, mas poderia ter fugido desse padrão, né? Beijo!
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