A três vamos lá

by - abril 15, 2016

Com ar de comédia romântica boba como a grande maioria costuma ser, A três vamos lá, traz outros contornos e questões que revelam muito do comportamento e cultura contemporâneos em casais jovens.

Micha (Félix Moati) e Charlotte (Sophie Verbeeck) são um casal que se conhece há alguns anos e vive junto em uma nova casa em Lille. Lá, são amigos de Mélodie (Anaïs Demoustier), uma advogada em início de carreira que atende clientes de difícil defesa. Há alguns meses, Mélodie e Charlotte mantêm um relacionamento escondido, até que o mesmo começa a acontecer entre Micha e Mélodie. Confusa, sem tempo e tendo que montar um cronograma que não interrompa seus compromissos profissionais ou entregue seus relacionamentos com cada parte do casal, Mélodie vive em tensão e confusão constantes.


O filme é leve e gostoso de assistir, é desses de domingo à tarde em algum cinema de bairro, sem compromissos ou pretensões de qualquer obra prima. As comédias românticas têm o propósito de fazer passar o tempo e nos deixar saudosos de alguma coisa que até podemos nem ter tido, mas que não chega a machucar os corações e A três segue essa cartilha. Há, contudo, alguns exageros de roteiro que beiram o absurdo, quase escapando à verossimilhança, mas não chegam a inviabilizar a estrutura básica da trama. O importante é ver o desenrolar dos diversos enlaces amorosos e sua conclusão que me deixou dividida, pensando inicialmente se faltou uma melhor saída para o roteiro ou se, na verdade, é esta a melhor forma de fazê-lo, levando em conta a construção gradual de seus personagens. 
Sophie Verbeeck (Charlotte) e Anaïs Demoustier (Mélodie)
Acreditando que a segunda opção é a mais coerente, o filme reforça um comportamento que reflete o que vivemos hoje, das liberdades e múltiplas visões nos relacionamentos. Hoje, importa muito pouco a opção sexual ou opções como marcadores e rótulos definitivos para as pessoas. O desejo é o principal motivador e ele se define enquanto se instaura, no momento de seu despertar. Da mesma forma, a manutenção das relações é tão fluida ou mais, sobrevivendo como um equilibrista sob um cabo extremamente fino que pende agressivamente para qualquer lado que o vento soprar. Os três personagens são construídos sobre essa base, assim Charlotte é aquela que consegue se manter em um relacionamento, mas, ao mesmo tempo é inatingível, sob uma barreira de proteção para si mesma ela se firma e, ainda que se envolva com um ou outro, não se permite a vulnerabilidade de uma entrega mais profunda. Não é que ela deixe de gostar de alguém, mas ela provavelmente não acredita ainda ter encontrado alguém que lhe desequilibre.

Neste sentido, Micha e Mélodie são semelhantes, não é à toa que ambos se relacionam com Charlotte: há sempre o pêndulo que pesa mais para o lado mais forte, mais controlador e falha para o sensível. Os dois aqui são os sensíveis, que se identificam, se envolvem e preferem a entrega total à entrega nenhuma. São os românicos de nossos tempos, cada vez mais raros, marcados como bobos e que, talvez, vivam de forma mais sincera com eles mesmos e seus pares. No filme, não são os bobos de um possível esterótipo, tocam suas vidas, tomam decisões e é essa a graça do filme. Seus exageros de roteiro se concentram muito mais nas cenas de 'acaso', algumas bastante supérfluas, mas que funcionam como pano de fundo, ilustrações de um entorno onde os protagonistas se encontram.

Hoje são poucos os casais jovens que, em um relacionamento monogâmico permanecem juntos por longo tempo, atravessando situações difíceis antes de desistir à primeira crise. Se nada é tão consistente, se tudo pode ser testado, estão todos disponíveis ou em vias de, e assim, os envolvimentos acabam superficiais, já que o aprofundamento exigiria tempo, escolha - portanto indisponibilidade - e dedicação, como aponta e faz contraponto a personagem de Charlotte. Quanto menor o envolvimento, menos crises, menos aprofundamento, menos cuidado.
A trois: Charlotte, Micha e Mélodie
Essa fluidez é marca do que nos é contemporâneo e não está de todo errado se adequado a seus interesses, mas nem sempre é compreendido, racionalizado desta forma. Uma versão honesta e evidente em todo o filme acontece à Micha e Melodie, considerando a história de cada um deles e as consequências de seu posterior envolvimento. Os personagens são atropelados por suas histórias, quase não dão conta das consequências  de suas ideias. Mas nada que se transforme em tragédia, ao contrário, o filme rende bons momentos e nos faz refletir em meio a um caos, que, ainda bem, não é nosso.


À parte seus exageros, o filme é relevante e divertido, com sequências cuidadosamente elaboradas das cenas de expectativas e sua grande e bonita conclusão. Zygmunt Bauman, sociólogo polonês que estuda a sociedade contemporânea, encontra em sua teoria o conceito de amor líquido, aquele modo de se relacionar em que sempre estamos buscando alguém com quem dividir os momentos, mas nunca achamos ser suficiente quem encontramos. Em um rápido e simplista resumo, permanecemos numa constante busca por alguém, estando sempre satisfeitos por um tempo, até que o encanto inicial se dissolva e no momento da construção da intimidade, se revolva em uma nova busca, no descarte do anterior. É um ciclo vicioso que culmina em histórias fugazes, como marca de nossos tempos fluidos, sem fixações, bases sólidas de qualquer coisa que requeira tempo para se desenvolver. Aqui, cada personagem põe em prática um tanto desta liquidez à sua maneira e veremos gente como a gente, com uma sinceridade sutil, escondida na leveza que o gênero promete e que passa suas questões mais delicadas quase sem percebermos, nos tropeços de alguns exageros, mas com cuidado na construção de seus protagonistas.

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