Quando pensamos em ver filmes
sobre amizade, é sempre aquela coisa de grandes amigos que passam por
experiências e sobrevivem pela união. A maioria é de filmes como Conta Comigo (1986) e Thelma & Louise (1991), que carregam
na aventura e emoção, mas de forma crescente e positiva. Não é o que acontece
em Rainha do Mundo.
Devastador, este filme conta a
história de Cat (Elisabeth Moss) e Ginny (Katherine Waterston), duas amigas de
sempre, hoje com trinta e poucos anos que resolvem passar uma semana numa casa
de campo. Cat acaba de se separar e há menos de um ano perdeu o pai, com quem
trabalhava e tinha como referência na vida. Ginny então traz a amiga para que
se recupere enquanto o ex-namorado esvazia o apartamento. É neste reencontro
que elas lembrarão o ano anterior, quando era Ginny quem estava em dificuldades,
as diferenças entre elas e como sobreviver às duras perdas.
Elisabeth Moss era Peggy da série
Mad Men (2007-2015). A reencontrei em
Cala a Boca, Phillip Morris (2014),
filme de Alex Ross Perry, diretor também deste, e lembrei de Garota, Interrompida (1999), mas nada do
que foi visto antes dá a dimensão de grandeza desta atriz. Tanto na série como
nos outros filmes já havia demonstrado um talento que a definiria como uma das
grandes atrizes de sua geração, mas aqui, de alguma forma, consegue superar a
si mesma. Cat segue um destino difícil rumo a uma séria depressão e vemos suas
dores e delírios se aprofundarem de tal forma que nos contorcemos no cinema.
Fica claro que o filme é muito mais do que um tratado sobre as separações e perdas que precisamos viver, é uma análise
honesta e dura da depressão enquanto doença.
Conhecemos Ginny como a boa amiga
que vai resgatá-la, ajudá-la a se recompor das dores que começam a afligir Cat
agora também fisicamente. Mas de cara há um estranhamento entre elas que cresce
exponencialmente, intercalando confrontos e carinho. Se no passado Ginny era
quem sofria por um cara que não a queria mais, foi incapaz de perceber que com
Cat não era, necessariamente, a mesma coisa. Talvez seja essa a grande
dificuldade de quem convive com uma pessoa clinicamente deprimida. Há uma névoa
que impede de distinguir o que é doença do que é um sofrimento momentâneo e
egoísta e enquanto esta nuvem não se dissipa, não conseguimos compreender o
outro, entender o aprofundamento de um sentimento que se transforma em doença,
que requer mais atenção, mais carinho, mais paciência – mais cuidado.
Cala a boa, Phillip Morris (2014) é um filme pretensioso. Ou é um
filme que fala de pessoas pretensiosas e muitas vezes temos vontade de socar a
tela por nos fazer participar daqueles diálogos arrogantes e vazios. O filme esteve
no Festival do Rio ano passado e tem Jason Schwartzmann fazendo o protagonista
chato e engraçado ao mesmo tempo – grande ator – Elisabeth Moss e Jonathan
Price. Alex Ross Perry consegue nos transportar para qualquer situação, nos
manipulando, seja por irritação com os personagens de Phillip ou na tensão deste último filme. Aqui o transtorno remete
diretamente aos delírios de Catherine Deneuve em Repulsa ao Sexo (Polanski, 1965) em interpretação nos seus pontos
críticos.
O
fato é que a história da amizade se constrói aos poucos e em silêncios que,
como o clichê indica, acabam dizendo mais do que as palavras. Estamos tão
entregues à dramaturgia das personagens – a chegada de Rich (Patrick Fugit),
amigo de Ginny traz um tempero para a acidez dos diálogos e a discussão de Cat
com ele é soberba – que ficamos aguardando o momento em que tudo vai explodir.
Esta semana que passam juntas nos deixa ansiosos, curiosos pelo desfecho,
apaixonados pela sincronia entre as amigas e fissurados por uma história em que
a montagem do filme joga conosco ao entregar um passado em proporções desiguais
e esporádicas regadas com um humor sombrio, trazendo momentos de uma leveza
suspeita, inteligente e mordaz. As alterações de comportamento das personagens
ganham tons à medida que se descortinam novas cenas de um passado que parecia
cor de rosa.
A fotografia linda, granulada
dentro de casa e clara com o cenário deslumbrante do lado de fora deveria nos
deixar aconchegados numa confortável casa de campo. Mas este retiro em meio à
natureza funciona como um isolamento de tudo e o exílio do mundo é também um catalisador
da disputa de poder. Esta queda de braço é sutil, como a trilha sonora que
delicadamente cria um suspense insuportável. Os enquadramentos remetem aos
dramas de Bergman em seus personagens femininos, pautados neste mesmo silêncio que
amplifica os sentimentos no olhar. Se Cat expressa melhor em palavras e tenta fazer
Ginny entender minimamente o que acontece, ainda que não assuma ou sequer
compreenda a gravidade, Ginny, por outro lado é um muro de apreensão, medo e
ignorância. O fato é que esse filme tenso nos deixa sem piscar, crescendo junto
com ele e tentando definir quem é, de fato, esta rainha. Com este filme, Alex
Ross Perry confirma maturidade estética e narrativa, se tornando uma referência
do cinema independente americano.
Esta crítica está no Blah Cultural! :)
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