Através da Sombra*
fotos: Guilherme Larrosa |
Através da Sombra conta a história de Laura (Virginia Cavendish),
uma jovem solteira contratada para ser tutora de uma pré-adolescente numa
fazenda de café e lá percebe algo de estranho na casa e em quem a habita.
Assumidamente filme de gênero, é o suspense e terror que nos levam juntos com a
protagonista para um ambiente sinistro.
É um desafio fazer filmes de
gênero no Brasil. À bem da verdade, desafio no Brasil é fazer filmes de forma
geral: da ideia à distribuição, cada etapa passa por inúmeros processos
burocráticos – sem mencionar a busca por financiamento – que cada produção é
como uma gincana, se a palavra não eliminasse um profissionalismo imprescindível.
Afora esta questão, o terror nacional remete à piada, ao humor negro. Algumas
vezes pelas vias do bizarro, como os filmes de Zé do Caixão, que chocam e garantem
risadas diante dos roteiros que se encaminham para uma estética do tosco, outras, enveredando pelo suspense ou obscuridade do enredo e aí lembramos tudo
o que foi feito com base em Nelson Rodrigues. Mas um filme com terror ou
suspense puro, não consigo lembrar o último que vi.
O que Walter Lima Jr. consegue é
exatamente isso: um filme com os elementos clássicos que configuram o gênero. A
começar pela ideia original: o roteiro é baseado no conto de Henry James, A outra volta do parafuso. Laura é
entrevistada pelo tio dos órfãos para ser sua tutora. Aí temos o primeiro traço
da personagem: uma mulher que veste roupas escuras que cobrem todo o corpo até
o último botão do pescoço, não importando o quão quente esteja lá fora. É
alguém que não sabe reagir à presença masculina, por falta de experiência
associada a uma educação religiosa que reprime ao gargalo qualquer impulso
sexual. Seduzida, aceita a oferta e segue para a fazenda que fica não se sabe
onde e isso pouco importa, já que a ação do filme é enfatizada pelo isolamento
dos personagens. Seu trabalho é educar a garota, mas um imprevisto traz o irmão
que estava na escola de volta. A partir disso, estranhos eventos tomarão tanto
a casa quanto Laura, nos presenteando com o que o diretor chama de trama diabólica.
Se a adaptação de Henry James já
garante o interesse dos espectadores, há outros aspectos que rumam para sua
qualidade. O tratamento do som, cujo destaque e uso devem ser calculados
milimetricamente para potencializar os efeitos de suspense é realizado
respeitando nossa inteligência. A fotografia de Pedro Farkas garante o apelo
necessário, unindo dias de sol e noites brilhantes a uma aura sombria de um
ambiente idílico e isolado. Quase nos vemos em Os Outros (Amenábar, 2001) pelo figurino de época e só o sabemos
brasileiro por contexto – fazenda de café, negros como funcionários remetendo a um passado colonial, idioma.
Pode ser esse mais um dos indícios que levaram meus vizinhos espectadores a
essa ideia de filme internacional. Um
detalhe que incomoda um pouco é a maquiagem de alguns personagens, mas
claramente é uma escolha da direção que reforça as características do gênero.
Uma das célebres frases de
Hitchcock é sobre a diferença entre suspense e surpresa. O suspense é quando é
permitido ao espectador saber que há um corpo dentro de um baú que pode ser
aberto a qualquer instante, como em Cortina
Rasgada (Hitchcock, 1948). A surpresa é quando não esperamos aquela cena de
impacto e tomamos um susto, como quando descobrimos o rosto verdadeiro da mãe
de Norman Bates, em Psicose (Hitchcock, 1960). Um bom filme de terror deve conter estes dois ingredientes e
isso vemos aqui, em um trabalho de montagem que dá ênfase a sequências
brilhantes onde ora somos tomados de assalto e até rimos, quase pulando da cadeira, ora
ficamos apreensivos aguardando os pequenos desfechos da narrativa, como a cena inesquecível do corredor e suas sombras.
Walter Lima Jr., retorna à ficção
sete anos depois de Os Desafinados e dá
um novo fôlego à sua cinematografia. Virginia Cavendish, que também é produtora do filme, reage bem ao seu
entorno, fazendo de Laura uma vítima em uma estranha situação. As crianças do
filme merecem atenção, em particular Xande Valois, que dá o tom certo de como a
infância pode esconder segredos. Ator desde 2012 e hoje trabalhando em novela, foi
uma escolha feliz no elenco que conta ainda com Mel Maia como sua irmã e Ana
Lúcia Torres como a antiga governanta.
Se ainda há preconceito quanto à
qualidade de nosso cinema ou o velho estigma da pornochanchada aposentada, marca
indelével de nossa história cultural, as produções dos últimos anos estão
revertendo o quadro com avidez, tanto pelo apuro estético quanto narrativo.
Talvez Através da Sombra não precisasse de 100 minutos para contar sua
história, mas o faz bem e encerra nos dando a certeza de que
vale o ingresso e a polêmica.
*Esta crítica e a cobertura do Festival do Rio e da Mostra de São Paulo estão no Blah Cultural! :)
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