Em 2008, mudei para o Rio de
Janeiro para fazer uma pós-graduação em cinema documentário. Neste mesmo ano participei
da oficina do Recine – o Festival Internacional de Cinema de Arquivo. Cinema de
arquivo é aquele que se vale de imagens fotográficas e cinematográficas de
algum passado, criado ou real. Como resultado, entregaríamos um curta com
imagens do Arquivo Nacional brasileiro que entraria em competição. Recebemos
uma seleção aleatória de filmes históricos, políticos e de eventos cívicos e
nos cabia criar uma narrativa. No meio disso, me encontrei em um filme sobre meu avô paterno, Walter
Ferreira.
Meu avô não era uma personalidade
da grande História, mas em nossa família foi a figura máxima masculina no lado
paterno. Homem simples e do interior da Bahia, destes que pouca gente conhece,
exerce sempre uma curiosidade em mim, já que ele morreu quando eu era criança e
para mim, é a imagem de um homem calado, sentado num sofá. O curta simples, sem
trilha sonora ou orçamento, levou o prêmio de melhor roteiro. A ideia era fazer
das imagens do Arquivo Nacional um complemento às fotografias de família, numa
simbiose entre os grandes políticos, suas famílias e a minha.
Passou ontem no Festival do Rio, Allende, meu avô Allende. A história é
contada pela neta de Salvador Allende e diretora, Marcia Tambutti Allende, que
busca informações sobre o avô que pouco conheceu. Apesar de termos histórias
completamente distintas, a similaridade de objetivos não só despertou minha
curiosidade sobre a forma que ela encontraria para o filme, como trouxe grande
surpresa: o início é bastante parecido com o do meu avô. A sequência inicial de
voz off da diretora, as imagens de
arquivo, a intimidade com o material e a sensibilidade de quem fala sobre a
família me despertaram para um documentário que eu parecia já ter visto.
Marcia vai além dos meus três
minutos. Ela parte de uma investigação sobre seu avô, mas encontra algo muito
maior. O fascínio pelo personagem não é à toa, Salvador Allende é reconhecida
figura pública chilena, foi presidente socialista do país em 1970, sendo
derrotado e morto no golpe militar de Pinochet em 1973, que instaurou uma das mais
dolorosas e longas ditaduras na América Latina. Enquanto interroga sua avó Hortensia
de 92 anos, investigando a profundidade doméstica do herói nacional que foi o
avô, recorre também à sua mãe e tia, suas primas, primo e irmão. Marcia
atropela a todos, se incomodando e sem perceber que o silêncio é a grande voz de
uma família atravessada por tragédias. Ao mesmo tempo, por haver uma intimidade
e franqueza dos personagens-testemunhas, as próprias discussões, interrupções e
queixas são expostas, numa montagem que corre entre as fotos de família e
campanhas políticas, filmes maravilhosos íntimos e outros segredos. A
construção de Salvador Allende dá ao público uma dimensão mais humana, com suas
falhas, peculiaridades e brincadeiras ali expostas.
Apesar das invasões de
privacidade em quedas de braço com os envolvidos, todos parecem querer
contribuir para este complexo retrato do grande homem, que culmina num
álbum familiar e essa construção é tanto metafórica quanto literal. Após o
golpe de 73 que termina no suicídio de Allende, exílio de alguns e
posterior suicídio de sua filha Beatriz em Cuba, a vida privada do núcleo entra em consonância com o passado nacional e é nítida a relevância deste filme
familiar para o país e mundo.
Este é o primeiro documentário da
diretora e é perceptível como funciona como uma necessidade, um conflito
pessoal que precisava ser solucionado ou descoberto. Talvez por isso a
insistência quase irritante e, em alguma maneira, a montagem reflete essa teimosia,
que se resolve. As exposições familiares e relatos pessoais em filme correm o risco e garantem um retorno positivo com um final feliz, se for possível o adjetivo. Conhecemos outro
Allende, mais humano, menos estampado em campanhas políticas e acabamos nos
interessando até mais pelas mulheres da família – estas sim, sobreviventes e
testemunhas de uma história que se confunde com aquela que aprendemos nos
livros. De repente será esta, a próxima investigação da diretora que levou
Cannes pra casa.
*O link pro curta sobre meu avô está aqui!
**Essa crítica e a cobertura do Festival do Rio estão no Blah Cultural! :)
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