Dei
a sorte de estar em São Paulo semana passada e passei no MIS – Museu da Imagem
e do Som*, para ver a exposição de Truffaut. Coisas de quem é fissurado e nerd,
mas a exposição vale a pena para quem curte o diretor, a Nouvelle Vague ou
simplesmente, cinema.
François
Truffaut** foi o parceiro de Jean-Luc Godard e mais alguns outros na abertura da
Nouvelle Vague. O movimento cinematográfico francês dos anos 60 aconteceu não
por acaso, na mesma década de nosso Cinema Novo e um pouquinho depois do
Neo-realismo italiano. É a década das transformações de comportamento e cultura
no mundo e o cinema é a arte que expressa isso de forma mais direta a seu
público. Vale a pena a exposição para saber mais também sobre a Nouvelle e seus
fundadores.
O
diretor e crítico de cinema era fissurado por Hitchcock de tal forma que fez
alguns suspenses – acabo de lembrar Woody Allen fazendo dramas a lá Bergman – e uma série de
entrevistas com o mestre, culminando em um livro fantástico e indispensável, Hitchcock / Truffaut. Fizeram ainda um documentário sobre os dois, que sairá este ano. Ele trabalhou assiduamente na
revista mais importante da crítica cinematográfica da França e, por muito
tempo, do pensamento sobre cinema no mundo, a Cahiers du Cinéma, fundada por André Bazin, mestre teórico desta
geração. Para além dessa conversa toda, o que importa é que acabo de rever Os Incompreendidos.
O
filme de 1959 é inaugural para a nova estética do cinema francês de então. À
primeira vista você não entende bem sua relevância, mas sente algo diferente
quando o assiste. É a história de um garoto de 14 anos, que tem em casa a
displicência e falta de cuidado, educação e carinho dos pais, na escola o
tratamento abusivo de professores autoritários e, com isso, inicia uma carreira
de pequenos delitos por onde passa. Antoine Doinel, cujo crescimento do
personagem – e do ator, Jean-Paul Léaud – vai permear a filmografia do diretor,
é extremamente complexo e humano em construção, como o retrato de um jovem inocente que
parece ser atropelado pelas circunstâncias e vê nestas oportunidades desviantes
uma saída para viver. A parceria de Truffaut - Léaud se fundiu não apenas nas filmografias,
como nas personalidades. Não era incomum acreditarem serem os dois apenas um,
ou que o jovem Léaud fosse filho do cineasta.
Os incompreendidos é um filme para ser
revisto de tempos em tempos. Como alguns poucos outros, de vez em quando bate
uma saudade, como se devêssemos reencontrar velhos amigos e ter a certeza de
momentos especiais. Acontece a mesma coisa com Manhattan (Woody Allen) e Acossado (outro fundamental
da Nouvelle, lançado logo depois e
a estreia de Godard). Assisti outro dia o documentário sobre Woody
Allen, e notei que ele e Truffaut dizem algo parecido, sobre como é maravilhoso
viver realizando os próprios sonhos. Talvez não tenha sido tão romântico como conto,
mas ter liberdade para produzir o que se imagina é
suficiente. Truffaut disse***: eis porque
sou o mais feliz dos homens: realizo meus sonhos e sou pago pra isso. Sou
diretor de cinema. Fazer um filme é melhorar a vida, organizá-la à sua maneira,
é prolongar as brincadeiras de infância, construir um objeto que é ao mesmo
tempo um brinquedo inédito e um vaso onde disporemos, como se se tratasse de um
buquê de flores, as ideias que temos em determinado momento ou de forma
permanente***.
Mas
o filme é ainda mais do que essa vontade de rever. Ele trata da adolescência
universalizando o tema; conseguimos ver um pouco do Pequeno Nicolau e de Coração
(livro, Edmondo de Amicis) nos momentos mais leves, nas salas de aula e nas relações com os colegas de classe. O
registro quase documental – e aqui Truffaut reclamaria, já que a não-ficção não
é pra ele – inaugura essa dramaturgia do que parece simples e natural, quando
as atuações são tão orgânicas que ali não parecem personagens, mas pessoas do cotidiano. É o olhar voltado para um cinema sem firulas, envolto numa
perspectiva de mudança, como seus planos de câmera e montagem insinuam. Talvez
essa fluidez venha da experiência de vida do diretor, que conheceu os
reformatórios de perto, bem como a juventude um tanto infeliz. O filme de 99
minutos dura muito menos do que parece e nos apegamos tanto a Antoine que quando acaba, ficamos à espera de uma sequencia que nunca aconteceu (que o diretor
se arrependeu de não ter feito).
Les 400 coups (título original) se
traduz como os 400 golpes (expressão
similar ao nosso ‘pintar o sete’) e soa metafórico para as artimanhas do jovem,
que pratica seus golpes como uma reação aos que recebe da sociedade e de sua
família. Em português, a tradução soa mais poética, Os incompreendidos e também correta. Vemos um retrato da cidade da
forma que não estamos acostumados e que nos toma um tempo para entender, só
sabemos ser Paris pelos créditos de abertura, com a base da torre Eiffel sem
vê-la por completo, como se aqui não fosse possível alcançar o céu. O mesmo
vale para Antoine e mais uma vez o filme vence; talvez vejamos pouco na vida e
no cinema atuais os maus tratos escolares, mas a de nosso herói e seus
desdobramentos seguem atemporais. A identificação com aquele jovem não nos toma
por completo, mas um fragmento já é suficiente para nos remeter ao que vivemos.
E daí vem a saudade e a eterna vontade de voltar ali.
**François Truffaut é um destes gênios do cinema. Pro nosso azar, morreu cedo demais, mas deixou uma filmografia digna de respeito e prazer para nós. Dá uma olhada aqui, que quase tudo vale a pena. Mesmo tendo nos deixado em 84, quando eu tinha um ano, ele é considerado um mestre atemporal, do quilate de Kubrick, Scorsese, Godard, Capra, Allen, Kurosawa, Glauber. Dá muita vontade de escrever mais sobre ele, passar horas lendo seus livros e artigos, vendo seus filmes ou, simplesmente, enchendo o saco dos amigos com essas conversas. J
***Livro: O prazer dos olhos – François Truffaut.
Editora Zahar.
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