What happened, Miss Simone?
Achava que não conhecia nada
de Nina Simone. Tinha até vergonha de falar, já que depois do documentário, todo mundo parecia saber dela há muito tempo e eu, pra variar,
estava por fora. A sinopse instiga, perguntando o que uma mulher que conseguiu
fama, riqueza e família poderia querer mais. Não teve jeito: uma pergunta dessas não dá pra ignorar.
Agora posso dizer que sei e sabia mais ou menos quem foi Nina Simone. Descobri não sei quantas músicas dela e outras
interpretadas inesquecíveis e sensacionais. Descobri que essa mulher
negra nascida no sul dos Estados Unidos na década de 30 não veio a passeio e
deixou sua marca cedo, quando queria ser uma musicista e tocar piano
clássico no Carnegie Hall. Não saber muito sobre ela até hoje, mas
conhecer suas músicas só foi possível com esse novo e sensível
documentário produzido pelo Netflix e Radical Media.
Há duas coisas a serem ditas – há
mais, mas comecemos por duas. A primeira é sobre o próprio Netflix, cuja
diversidade de produções vem crescendo absurdamente e agora estamos saindo dos blockbusteres e dos filmes cult conhecidos e investindo em
coisas mais bacanas como documentários e filmes independentes. Ainda não é aquela estante larga e variada de cinema de
autor que tinha na locadora que trabalhei no século passado, mas está chegando
lá. Meu desejo antigo e satisfeito de trabalhar ali hoje é parecido com a
vontade de ser curadora desse portal mágico da felicidade. Ao mesmo tempo, estrear
e ser uma produção Netflix significa (por enquanto) que não irá para
o cinema, o que é uma lástima. Um filme desses numa tela maior, com toda a aura
de uma grande sala, tem, necessariamente, outro impacto.
A segunda coisa a ser dita é sobre
a própria natureza deste documentário. Robert Drew, no recém-lançado A verdade de cada um (org. Amir Labaki,
diversos autores – ótimo), fala sobre sua visão documental e
de como ela precisa se apropriar de uma veia dramática para ter interesse. E
esse é o fator que diferencia um bom filme de outro razoável. Exposição
de fatos é jornalismo, uma forma completamente distinta e superficial da narrativa densa da estrutura clássica de uma obra de ficção. Por mais
controverso que pareça, para ser documentário, há que seguir da mesma forma, estabelecendo tempos narrativos de distensão, clímax, pontos de virada, resoluções de conflitos. E Liz Garbus faz
isso muito bem. Esta documentarista que acabo de conhecer com Miss Simone, tem outro filme na
plataforma, sobre Marilyn Monroe (Love,
Marilyn, 1012) e um terceiro, também biografia, retratando o xadrezista, Bobby Fischer. Em Miss
Simone, pelo menos, foi feliz na escolha do tema e da forma.
Voltando à cantora, só resta a
confirmação de que meus amigos estavam certos: o filme é muito bom. Ele busca
um pouco do que conhecemos do tradicional documentário americano com aqueles
depoimentos de pessoas sentadas, mas isso funciona como ilustração e pontuação
das transformações da protagonista. Há não sei quanto de duração de imagens de
arquivo que se equilibram bem, entre festivais, programas de TV, shows e
filmagens domésticas de infância até o ambiente familiar de então e descobrimos que quem
achávamos ser uma figura ‘desconhecida’, foi também ativista de direitos civis,
mãe, compositora, artista, mulher. É uma história de luta e redescobrimento de alguém
que foi vivendo sem escolher onde pisar, se perdeu, se reergueu e aí sim, encontrou seu caminho.
Somos guiados pela música e por
sua voz, em depoimentos de uma voz off
quase sobrenatural, mas que não assusta: é bom ouvi-la ao invés de sempre
esperar que falem por ela. Como com Tina Turner, ela também apanhava e era estuprada pelo marido
que a obrigava a trabalhar além da conta e, da mesma forma suportava, sem saber
exatamente por quê. E ao ouvi-lo falar e se mostrar para a câmera, o asco nos toma, nas atrocidades que narra não há arrependimento gerando um desconforto que se repete, quando ouvimos de sua filha relatos
impressionantes sobre maus tratos agora vindo de sua mãe e de como, ela decidiu morar com o
pai, após a separação.
Se um filme documentário requer
estrutura dramática, este faz com precisão. Quando descobrimos aquelas músicas
que hoje são gravadas em outras vozes ali, naquela suavidade e força em Nina
Simone, cada estrofe soa como uma grande surpresa. E a montagem dos depoimentos
incomoda pouco – até por eles serem concisos e contarem gradualmente a
efervescência, clímax e catástrofe de nossa heroína – entre seus diários ali
recortados em trechos manuscritos que traduzem o íntimo de uma mulher conturbada
que parecia nunca conseguir parar pra
pensar. Ao mesmo tempo, senti falta de alguma história sobre seus pais e sete irmãos, de que pouco sabemos. Talvez tenha sido uma escolha da direção pela
dificuldade de conseguir arquivos e depoimentos relacionados a eles, à exceção
do que foi ali exposto.
Em cada volta do parafuso da vida de Nina Simone
há uma busca de razão, prazer, força, felicidade e justiça, e que por fim
encontra algum equilíbrio, entre a bipolaridade com a medicação que a controla va e reprimia, a aceitação em não ser a pianista clássica, mas a cantora e
pianista que atravessou grandes estilos da música norte-americana, se tornou uma
das maiores vozes de seu país, deixou de ser só a cantora para ser também a
ativista dos direitos dos negros americanos e que morreu cedo demais, sem aceitar que tudo
tinha era tudo o que queria.
E agora deu vontade de ver tudo de novo.
3 Comentários
Ótimo! Tenho ouvido falar, vou assistir!
ResponderExcluirQueria mesmo ler um comentário diferente sobre este documentário... Depois que li o primeiro, perdi um pouco a vontade de ver.
ResponderExcluirSoube que dão destaque a um ex marido violento, sem destacar a violência. Dão destaque a uma filha que claramente tinha problemas de relacionamento, e parecem retratar Nina como uma péssima mãe. Além de fazerem a mudança dela pra outro país parecer algo excêntrico e superficial,, e não político.
Confirma?
Quero saber mais, de qualquer maneira... =]
Oi Fê! Então, li um texto que falava disso, provavelmente o mesmo. Dão destaque a um marido violento, mas destacam a violência. Na real, os depoimentos desse marido-monstro soam tão naturais, que chega a ser assustador. No meu entendimento, a diretora não quis polemizar, para justamente não entrar numa briga e perder os relatos, mas é uma interpretação. Não concordo com a questão da 'péssima' mãe, o que a filha conta é que ela não era essa maravilha toda e há relatos de maus tratos, mas há relatos da mãe sobre maternidade, então temos um pouco de cada coisa. Acho que Nina Simone foi um ícone e deve ter seus fãs 'tarados', como eu sou de outras bandas e aí qualquer detalhe que arranhe sua imagem vai se tornar uma grave ofensa. Do meu ponto de vista, entendo que o filme funciona bem, não polemiza questões sérias por escolha (não é um filme de denúncia), mas para dar um panorama de como foi a vida dessa mulher e suas transformações em períodos históricos-chave para os EUA e mundo. E isso faz bem. :)
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