Crítica: Streetwise, Mary Ellen Mark

by - junho 16, 2015

Comecei a levar o cinema a sério quando era adolescente. Na verdade, não sei se foi sem querer ou que tipo de vocação e indicações me apareciam, mas assistia tudo o que me apresentavam e comecei a prestar mais atenção nos filmes diferentes. Acho que é uma curiosidade insaciável de viver tudo e conhecer tudo e os filmes são um grande facilitador, como uma janela para vários mundos e experiências.


I love to fly. It's just you're alone, there's peace and quiet, nothing around you but clear blue sky. No one to hassle you. No one to tell you where to go or what to do. The only bad part about flying is having to come back down to the fuckin' world.
Rat.


Então, meio sem saber direito o porquê e acho que na mesma época, assisti Kids (1995), Christiane F. (1981), Diário de um Adolescente (1995) e Laura Palmer (1992). Todos causaram impacto absurdo, mas acho que Kids me aterrorizou mais, porque parecia mais próximo. Na época lembro que não tinha gostado muito, acho que não tinha compreendido direito e fiquei com uma impressão de que aquilo tudo era um exagero, um filme sem necessidade. Mas, na verdade, estava realmente assustada. 

Aqueles jovens de classe média, vivendo na rua, usando drogas e se entregando a riscos e descaso em meio às descobertas de si e do mundo era algo que me deixava perplexa, porque eles também eram adolescentes e ainda tinha uma protagonista tão inocente quanto eu, mas menos medrosa – e talvez eu me visse nela. A narrativa, que parecia acompanhar um grupo real de jovens, tirava a tinta da fantasia e nos deixava a todos, os de verdade e os da ficção, no mesmo mundo.

Christiane F. e Diário de um Adolescente mesmo sendo bastante diferentes, tinham uma roupagem que me deixava mais distante deles. Não tinha amigos que usavam as drogas, a própria Christiane F. era viciada em heroína e eu nem sabia direito o que era. Na minha adolescência, o máximo que se ouvia falar era de um vizinho mais velho da rua da casa de meus avós que fumava maconha e isso era quase um sinônimo de “pessoa muito assustadora, nunca fale com ele”. Então, ainda que estes filmes trouxessem histórias tristes e difíceis, especialmente Christiane, por ser baseado em uma história real, era mais um aprendizado do que algo que assustasse de fato. 

Por fim, Laura Palmer, meu primeiro David Lynch. Como vinha de um seriado cuja existência eu desconhecia, entrei no meio da história dessa adolescente que buscava uma diversão mais arriscada numa cidade pequena e muito bizarra. Na verdade, exceto pela questão da prostituição e das fantasias – não era um filme permitido para menores – senti uma atração absurda por aquela forma de direção, a bizarrice surrealista, um humor macabro e uma trilha sonora e fotografia sedutoras me ganharam e nunca mais fui a mesma. Mas esse é o mais distante dos três outros.


Este mês morreu Mary Ellen Mark, uma grande fotógrafa americana desconhecida pra mim. Depois de começar a estudar fotografia, um dos meus interesses é conhecer o trabalho dos ícones pela mesma razão que vejo filmes de tudo quanto é canto. Assim, fiquei feliz de não conhecê-la ainda e depois um pouco triste dela ter morrido. Descobri que tinha produzido um documentário em 1984 e que seu marido o dirigiu, Streetwise

Sem saber nada sobre, fui atrás - o filme tinha alguma grande referência onde buscava e vi que algo importante tinha ali. Até parei de pesquisar as incríveis fotografias e o encontrei completo na internet.  Semana passada, Kids, Christiane F., Laura Palmer, Diário de um Adolescente e até Taxi Driver vieram juntos  e de vez em mim, com esse filme impecável.

E implacável. Streetwise conta a história de um grupo de adolescentes que vive nas ruas de Seattle e sua rotina consiste em drogas, furtos, prostituição, sobrevivência, mendicância, violência e algum carinho, amor e cuidado. Eles estão ali um pouco por opção, por virem de famílias desestruturadas, por achar que aquele é o melhor ou único meio que têm ou por uma conclusão que varie das anteriores. O filme é feito nos moldes do cinema direto, acompanhando a vida de 9 personagens, quase sem intervenção. 

Ao mesmo tempo, há momentos de depoimentos que se intercalam com a rotina, mas quase não se ouvem perguntas, tampouco se vê o câmera ou o diretor. Ficamos perplexos com a franqueza daqueles jovens subnutridos de feições infantis e discurso firmado em um presente que nos deixa sem esperança ou até 'permissão' de imaginar qualquer tipo de futuro.

A protagonista é Tiny (Erin Blackwell) uma prostituta de 14 anos – e incomoda muito descrevê-la assim. Sua mãe alcoólatra acredita que a jovem está passando por uma fase e aceita sua escolha, como se todos vivêssemos em um mundo de contrários, onde a distorção é regra. Tiny nos conta, com uma consciência tranquila e precoce, como costuma se dar bem nas ruas, porque muitos homens têm taras em meninas muito novas, ou como quando anuncia para mãe a possibilidade de estar grávida. Ao mesmo tempo que segura essa independência familiar, mantém um relacionamento amoroso com Rat, outro garoto da mesma idade que nos conta como ela já quer se casar sendo tão jovem. 

Essa sinceridade permeia todos os personagens; não há vergonha em falar de si, de como se vive, do que se faz. Ficamos nos perguntando se tudo isso não faz parte de uma encenação deles mesmos, como uma defesa quando se provoca alguém ou simplesmente ao ligar a câmera, mas não. A consistência e o credo no que dizem e vivem confirmam cada sentença.


O filme foi feito com o intuito de evidenciar que até em Seattle – considerada na época uma das melhores cidades americanas para viver – existia crianças e adolescentes que sobreviviam nas ruas. Kids veio direto à mente nos primeiros 5 minutos, talvez pela displicência com que vivem, transmitindo um realismo angustiante, muito pior que a ficção. Em Taxi Driver, é impossível  não relacionar a personagem de Jodie Foster a Tiny, ainda que pareça ser mera coincidência.

Imprescindível para quem estuda e gosta de documentários, o modelo do cinema direto é marcado sempre por registrar a situação com uma interferência clara – não se quer esconder que é um filme – mas que busca o registro sem interromper ou propor conclusões precipitadas. Estas acabam partindo de nós, espectadores. E ali, naqueles 9 personagens de uma história sem final (feliz, aparentemente), vemos um pouco de tudo o que acontece com muitos jovens em qualquer lugar do mundo em 1984, antes, hoje e amanhã. 

São como uma eterna uma geração marginal sem futuro, vivendo somente do agora. Não são inocentes, na medida em que podem tentar reverter suas vidas, mas são também inocentes, quando encontram ali sua razão de sobrevivência. Assassinatos, prostituição, suicídio, gravidez, dsts, violência, assaltos. E são tão crianças que não sabemos o que sentir, diante de uma falsa esperteza, uma malandragem ingênua que em uma confusão de sentimentos, percebemos mais pena do que raiva.

Streetwise é também um livro de fotografias de 1988 e Tiny teve sua vida acompanhada nos anos seguintes. Em 2005 Martin Bell e Mary Ellen Mark fizeram um curta de resgate sobre ela. Hoje, Erin Blackwell não é tiny, mas uma mãe de 10 filhos de diversos pais, casada. Streetwise ganhará uma sequência, com financiamento no kickstarter e em breve saberemos o futuro destes ex-jovens à margem, tendo certeza que destes, pelo menos 3 morreram ainda nos anos 80. Que Mary Ellen descanse em paz, sou grata por ter lhe descoberto, um pouco triste e eterna fã. 

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1 Comentários

  1. É tão bom quando descobrimos algo interessante assim, né?! Tá na minha lista já... vou ver depois, com certeza!

    Bjos!

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