Sargento Getúlio: um dos melhores livros da vida

by - setembro 09, 2014

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João Ubaldo Ribeiro
Eu já estava pronta pra dizer que esse é o melhor livro que li esse ano. O melhor de muito tempo, na verdade. E é mesmo... mas eu li outros muito bons em que não escrevi nada (o de Ingmar Bergman, Lanterna Mágica é impressionante, por exemplo... assim como Macbeth, assustador) que agora fiquei tímida de considerar esse tanta coisa assim e esquecer dos outros. Mas o fato é que esse é um dos melhores em muito tempo e que me surpreendeu. Não sou crítica de livros, mas acho que todo mundo deveria, pelo menos saber que existe uma coisa dessas no mundo.

Sargento Getúlio foi o primeiro livro escrito por João Ubaldo Ribeiro, felizmente baiano, infelizmente morto nesse ano cheio de perdas inacreditáveis e dolorosas. Com este, ele já se tornou um dos maiores escritores de sua geração... de qualquer geração. Isso porque ele traz o nordeste profundo, aquele que é ridicularizado, taxado de ignorante e analfabeto, de bruto e rude. E ele traz no texto o que há de mais honesto, no âmago, no coração, de Brasil mesmo.

Eu sou nordestina de litoral e capital, do que já foi – não sei se ainda é – a maior do nordeste, Salvador. Não é motivo de glória, é só pra falar de tamanho, apesar de amar ser baiana, soteropolitana e ter orgulho disso, com todos os defeitos e qualidades que surgem daí. O fato é que eu venho de uma cidade grande, cuja distância com a linguagem desse texto não é cotidiana, apesar de bem próxima.

João Ubaldo é baiano de Itaparica, quase um apêndice de Salvador, de tão próxima que a ilha é de nós. Não sei a biografia dele, mas imagino que tenha tido muito da vida urbana e deve ter feito uma pesquisa e prestado atenção em muita coisa pra chegar nesse livro. É uma delícia de ler principalmente quando já se ouviu João falar alguma vez. O homem tinha uma voz grossa e uma calma pra falar, um sotaque delicioso e conhecido que faz qualquer retirante – moro no Rio há seis anos – se derreter e mostrar um sorriso que é todo saudade. Ler esse livro trouxe uma mistura doida de sentimentos pelo assunto, pela forma e por conseguir imaginar as entonações, os ritmos da fala do protagonista.

Sargento Getúlio é um homem desses rudes, brabos, cabra macho mesmo de sertão. Ele precisa levar um preso de Paulo Afonso, na Bahia, para Aracaju, em Sergipe e isso é uma viagem bem longa, ainda mais se considerarmos que ele vai por terra. Então, nosso homem segue falando tudo o que lhe acontece, nos pormenores, explica toda a sua situação sempre no presente e vamos participando do seu dia a dia em uma fala sem fim, quase sem parágrafos, quase sem parar. E não conseguimos parar de ler também. E se odiamos esse homem por algumas ações que pratica e o achamos mais ruim que o demônio, em outras, ele é um ser humano, um homem-coração. Porque o nordestino é isso mesmo, é macho até onde pode, com ou sem machismo. É macho no sentido da coragem, de meter as caras e fazer valer. É macho de enfrentar a vida, nem que precise de um facão (ou peixeira, se preferir) do lado. É macho até pra amar, que vai lá no fundo da coisa e se entrega todo, nem que se rasgue todo de dor depois. E se somos brutos é porque somos brutos, não porque somos ruins ou ‘maleducados’. Somos brutos porque não somos finos, somos sinceros e diretos e imperativos, mas cuidamos e protegemos de quem gostamos como se fossem uma parte de nós, um membro de nosso corpo ou até mais que isso.

E por isso e tudo mais que é ser nordestino é que esse livro é fantástico. Porque ele nos faz adorar essa história e sofrer com as atrocidades e gargalhar em alguns momentos e morrer de fome e água na boca em outros e é sempre uma emoção diferente e sempre sentimos tudo e às vezes precisamos repetir a linha de cima porque não pegamos o ritmo da fala e é tão deliciosamente regional, que precisamos mesmo ler de novo pra entender... não sei se quem não é nordestino ou nortista pega o assunto inteiro, mas vale muito tentar. E vemos um mundo de cidades que nunca ouviríamos falar e de situações de um cotidiano pequeno e maravilhoso e é quando nos perguntamos o que queremos – o que eu quero em mais uma grande capital, ainda mais distante da minha. E isso tudo num livro de ficção, que nos desperta pra mil outras ideias e pensamentos. Meu pai me perguntou, sem ter lido o livro (mas estou atazanando todo mundo que passa por mim nesses tempos com ele, porque só falo desse bendito Getúlio agora) quando vão fazer o filme e eu acho que não combina. Mas dá em música.

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Sargento Getúlio, João Ubaldo Ribeiro
E como me empolguei muito, resolvi colocar uns trechos aqui:

“Eu sou Getúlio Santos Bezerra e meu nome é um verso e meu avô era brabo e todo mundo na minha raça era brabo e minha mãe se chamava Justa  e era braba e no sertão daqui não tem ninguém mais brabo do que eu, todas as coisas eu sou melhor. Pode vim.”

“Mas não vou dizer a todo mundo que cortei a cabeça do tenente. Só digo ao chefe e calo a boca e cruzo os braços e boto o olho no vento. E quem quiser que bote o olho no meu. E pronto. E se ninguém quiser ir comigo, eu vou só, aviu Amaro? É, disse o padre, eu não sou esses machos todo.”

“(...)é isso mesmo, padre, é isso mesmo e esse troço já está me dando uma ingrizilha que eu não aguento, nunca tive tanta perturbação, não gosto dele. É como que me dá uma vontade de chorar, mas é de pena de mim.”

“Morrer é como que dormir e dormindo é quando a gente termina as consumições, por isso é que a gente sempre quer dormir. Só que dormir pode dar sonhos e aí fica tudo no mesmo. Por isso é que é melhor morrer, porque não tem sonhos, quando a gente solta a alma e tudo finda.”

E tem muito mais e mais bonito até, como o amor por Luzinete e todo o seu desenrolar. E todo mundo deveria ler. De verdade.

E obrigada, João. Me deixou muito feliz pelo livro e muito triste por não ser possível ler mais, mas vou catar a bibliografia inteira depois disso.

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