Como
fã de filmes de estradas, gosto destes filmes que me remetem às minhas passadas
e futuras viagens, cenários que passam e se transformam diante de nós,
histórias que mudam de fotografia às vezes apenas com a trilha sonora. É a
evasão da melhor forma feita e é a que me ganha mais facilmente. Por outro
lado, há os filmes de locação; personagens encerrados em um ambiente, restritos
em movimentos e livres em diálogos. Esses filmes lembram um pouco o teatro pela
restrição, mas o transcende em movimentos de câmera, riqueza de planos e cortes
inteligentes.
No
clássico 12 homens e uma sentença (1957), que todos deveriam ver, eles estão
numa sala de júri decidindo o destino do réu. Os diálogos são o filme que se
tornou dos mais importantes do cinema, com seus argumentos, réplicas e
tréplicas, olhares e comportamentos desses atores que se imortalizaram em
quatro paredes. Hitchcock em sua tentativa de filme sem corte (o impedimento
era tecnológico, então o longa é um plano-sequência falseado em passagens da
câmera por fundos escuros para escamotear as interrupções) faz um Festim Diabólico rico em detalhes, que
nos deixa boquiabertos dentro de um apartamento. Isso em 1948. Outro na lista
dos imprescindíveis, Repulsa ao Sexo traz Catherine Deneuve em um surto psicótico dentro de sua casa
em 90% do filme, sozinha e quase sem diálogos. Só Polanski poderia ter
explorado as capacidades da atriz com apenas 22 anos. O fato é: filmes de uma
locação nos prendem numa tensão sempre crescente e o roteiro tem que estar
amarrado de tal forma a não cansar, mas definindo esta condição como
fundamental à trama.
Prenda-me traz a história de uma mulher,
mãe de um adolescente que às vésperas da prescrição de um crime, assume a culpa. Ela havia empurrado o marido da varanda do apartamento, mas
o assassinato foi solucionado como suicídio. Sophie Marceau aparentemente
carregando um remorso católico sem fim chega a uma delegacia e se entrega. A
delegada, ao ouvir sua história repleta de abusos cometidos pelo marido – espancamento, estupro, roubo, humilhações –
entende que o pecado já foi purgado e nada mais deveria residir na
vítima-assassina. Com o impasse, ficamos com elas na delegacia e a presença ocasional de um funcionário menor, que assiste à
delegada. O filme alterna os extremos das protagonistas e demoramos um pouco
para entender o porquê da vitimização, dessa culpa imensa que nossa mártir leva
consigo.
Quando
vi o trailer, me interessou por se tratar de uma questão moral: prender uma que
se diz criminosa diante de outros crimes de que foi vítima. O que vale mais? A justiça pelo assassinato de um homem execrável ou a condenação de uma mulher que o matou quase em defesa própria? O
filme ultrapassa essa primeira questão do trailer e por isso leva créditos: chegamos num cenário em que a lei por si não é suficiente para fazer
justiça; que a própria definição da palavra torna-se flexível e parece
esticar-se para atingir onde a lei a interrompe.
O
filme traz ainda outros pontos de metáforas que brincam com o surreal: o espaço
fechado, alucinações, homens presos com capacetes de motociclistas que se mexem como
abelhas cegas dentro de uma cela – não se veem rostos, apenas ruído e agitação. Algumas alternâncias de narrativa além dos flashbacks que contam a
história pregressa da protagonista insinuam ainda uma relação entre as duas
mulheres que vai se esclarecendo sutilmente, à medida que a
história se fecha. E se quando estava assistindo o filme me perguntava se ele não se repetia em diálogos, agora acredito que estas
cenas eram importantes para justamente enfatizar a angústia da protagonista ao
perceber que sua última vontade não será realizada. E confiamos na delegada, da
mesma maneira, de que a ré não deve ir presa.
Há
muito que se discutir aqui em um filme simples
de produção e execução complexa. A força das duas atrizes – Sophie Marceau
e Miou Miou – o confinamento e a montagem nos levam para outra categoria de narrativa
em que só desvendamos aos poucos, tirando suas camadas de significados dos olhares e diálogos. O
mesmo vale para os planos, os cortes e movimentos de câmera: a vítima é sempre
o olhar subjetivo, a câmera nervosa e trêmula porque está à espera do
pior – que sempre vem. É o grande trunfo da obra que só se comprova à medida
que vamos encerrando. Sentimos como se fôssemos vítimas da violência doméstica
ali mostrada, em uma mistura de vergonha e humilhação que vai muito além da dor
física. Em um papel secundário entregue aos flashbacks, vale ressaltar
a grande atuação de Marc Barbé, como o vilão, aquele que sempre odiaremos por
representar tão bem toda a maldade que pode ser direcionada a uma mulher. Não
suficiente, o fechamento do filme ressalta a habilidade na
construção do roteiro, em que se concluem as histórias particulares das
personagens com um tapa na cara de todos. É inesperado, forte e nos deixa
perplexos, como um soco no estômago. E praticamente em um só ambiente.
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