Crítica: Hannah Arendt (2012)

by - agosto 29, 2013


Hannah Arendt (2012)
Um dos temas que Hannah Arendt mais estudou foi a forma de pensar. Compreender, entender, refletir, conhecer, cada uma dessas palavras – sinônimos, à primeira vista – tem uma definição que quase complementa a outra. Nós, reles mortais, precisamos de um tempo para assimilar tudo o que ela diz de forma simples.

Em Compreensão e Política, Hannah fala sobre compreender como uma atividade interminável, por meio da qual, em constante mudança e variação, aprendemos a lidar com nossa realidade, reconciliamo-nos com ela, isto é, tentamos nos sentir em casa, no mundo. Essa reconciliação e compreensão nada têm a ver com o ato de perdoar, que não é sua condição nem sua consequência. Perdoar (sem dúvida uma das grandes capacidades humanas e, talvez, a mais ousada das ações do homem, já que tenta alcançar o aparentemente impossível - desfazer o que foi feito - e tem êxito em instaurar um novo começo onde tudo parecia ter chegado ao fim) é uma ação única que culmina em um ato único. Com base nisso, começamos a entender o porquê de tanta polêmica em torno da reportagem (que virou livro) de Hannah Arendt sobre o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, em 1963. Talvez não a tenham entendido direito.


Li o livro há pouco. Para minha sorte, o filme de Margarethe von Trotta acaba de ser lançado e trata da repercussão da reportagem publicada na New Yorker. Hannah foi acusada de ‘perdoar’ Eichmann, quando tudo que ela mostrou foi um perfil humano, buscando um entendimento das funções e responsabilidades dele na máquina de morte nazista. O filme é interessante à medida que nos prende até quando suas ações são todas de discussão intelectual. Nada grandioso acontece na tela – à exceção das cenas reais e ficcionais do julgamento – a narrativa está centrada na polêmica das interpretações feitas às pressas de um texto que merecia ser lido com cautela. Urgente o tema e a repercussão, é de se entender que a construção das ideias sobre Eichmann e o Nazismo hoje não correspondem ao que se viveu 50 anos atrás. O número de sobreviventes era muito maior, a sensibilidade de outra grandeza e o próprio pensamento sobre o assunto estava se desenvolvendo. Hoje, ao estudarmos um pouco mais, conseguimos entender ‘com calma’ o que se passou.

Eichmann foi responsável pela logística. Sua função era organizar o transporte dos judeus nos campos de concentração, de forma a enviar o máximo deles em menor número. Com isso – e aí entra o subtítulo do livro, a banalidade do mal, termo cunhado por Arendt sobre a redução da culpa pelo funcionamento burocrático do Estado: ninguém é culpado pelo Holocausto (falando da baixa hierarquia, como Eichmann), quando todos cumprem ordens e executam uma etapa no processo de extermínio. O próprio Eichmann entende dessa forma quando diz que nunca matou um judeu, portanto, não perpetrou o mal genocida. Hannah o define como um homem comum, limitado, cuja vaidade e princípios estão na execução de seu trabalho com perfeição, como se ele não alcançasse os motivos, como se não importasse a finalidade. Ele era o Chaplin de Tempos Modernos; sua função é só apertar parafusos, ele não respondia pela entrega do produto.

O filme contextualiza: conhecemos Hannah e seu entorno intelectual antes da reportagem, quando ela se oferece para cobrir o julgamento à New Yorker. Judia, sobrevivente de campo de concentração e residente em NY é uma senhora de respeito, professora de filosofia, uma das grandes pensadoras de nossos tempos, herdeira de Heidegger. Logo de início, estranhamos a interpretação pesada de Barbara Sukowa, como se a intenção fosse encarnar a própria Hannah em seus trejeitos e poses, ficando um pouco teatral. Outros atores seguem o caminho, talvez seja uma característica da direção –  deslocando o tempo do filme, dando a impressão de estarmos num grande flashback. Aos poucos nos acostumamos – ou eles estariam mais naturais? – nos entretemos com a construção do grupo de Hannah, seus amigos, marido, sua vida pessoal. Essa aproximação que o filme promove nos deixa com vontade de saber mais, é um luxo poder reconstruir a vida intelectual de forma tão íntima e, pareceu, tão verdadeira.

A compreensão é interminável e, portanto, não pode produzir resultados finais; é a maneira especificamente humana de estar vivo, porque toda pessoa necessita reconciliar-se com um mundo em que nasceu como um estranho e no qual permanecerá sempre um estranho em sua inconfundível singularidade. 

Talvez seja a busca por se enquadrar em um mundo tenha sido o objetivo de Eichmann desde o início. O que vemos no decorrer do livro é exatamente isso: um sujeito tão entranhado no sistema que não percebe a distorção daquela lógica. É como se seu trabalho representasse a reconciliação com este mundo em um grau tal, que tudo o que é externo soa estranho. O mundo é o trabalho, o sistema. A polêmica surge a partir da humanização do sujeito. Hannah, em brilhante análise, entende quando ele declara inocência pelos crimes no sentido da acusação, já que ele sozinho não pode ser responsabilizado pelo genocídio. 

Outro destaque, além da importância de popularizar Eichmann e sua história – é vê-lo em imagens reais. Ideia brilhante da diretora, o resgate de imagens de arquivo é chocante. Estamos acostumados a ver Hitler, Goebbels e Himmler nos programas de tv e filmes sobre o Nazismo. São imagens do nosso universo, imagens de poder, no auge do regime. Aqui vemos um homem franzino, estranho – o tipo do sujeito que sofreria bullying na infância moderna – e, claro com ar sociopata. Ao trazer imagens reais, eliminamos a interpretação do ator e o impacto na tela é muito maior. As cenas de Eichmann são em preto-e-branco, enclausurado em sua caixa de vidro – proteção cedida para ele no julgamento – cercado de policiais.  O desafio de Barbara Sukowa é reagir a estas imagens de arquivo, como uma experiência real – da presença de Eichmann.

É difícil pensar no livro, na História e associar ao filme sem perder parte de sua análise. O tema forte ganha espaço – sempre curto – para qualquer discussão. O filme tem o mérito de trazer uma ótima atriz no papel de uma das pessoas mais importantes do século, popularizando-a com um novo ponto de vista sobre os criminosos da humanidade. Bem construído, seguimos até o fim tensos, entre as duras – e hoje sabidas – injustas críticas que Arendt recebeu na época e a certeza de que ela não concordava com o nazista, mas entendia os limites da sua responsabilidade nos crimes cometidos pelo Estado.

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