Cavalos

by - abril 06, 2011


Investindo no É Tudo Verdade mais uma vez, consegui assistir ao debate sobre o mercado internacional de cinema documentário. O interessante foi, além de saber um pouco do financiamento para co-produções Brasil-França, ouvir sobre Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo. Este foi o filme do Festival do Rio 2010 que ganhou meu coração, minha alma e tudo mais que podia existir em mim naquela tarde no Odeon.

Viajo é um filme de estrada, de saudade, de nordeste. É uma fotografia do Brasil de dentro. Você sente a película vibrando com os batimentos dos corações de quem a produziu e toda a beleza do filme está na simplicidade, numa história linda que tem tudo de real e fantasia.

A produtora do filme, Daniela Capelatto, estava na mesa. Ela nos contou que Viajo, foi o filme brasileiro que mais percorreu o mundo ano passado. Ele foi pra diversos festivais e concorreu como Ficção e Documentário, ganhando prêmios nas duas categorias. Como pode isso? A questão não está na categoria que assinalamos nas fichas de inscrição, mas no que diz o filme. A câmera de Viajo adentra o Brasil verdadeiro, encontra não-atores, realidades, rotinas, vidas reais ou, pelo menos, vidas possíveis. Ainda que o fio da meada seja uma história inventada, o entorno é muito mais documental do que fantasioso.

A categorização livre ou abrangente insere possibilidades infinitas de criação. Nada disso é novidade nas entrelinhas, se pensarmos em muitos outros docs que se valem da reconstituição ou até os mocumentários*, sobre assuntos criados, realidades inventadas. Recordo imediatamente do filme de Renato Gaiarsa, do último post. O filme que fiz para não esquecer é uma história real, que parece sempre se dar no presente, porque trata de uma ausência, da separação de um casal quando nitidamente os percebemos e sentimos na tela. A forma poética que o autor escolheu o permite se desvencilhar também de rótulos; ele pode sugerir uma ficção tanto quanto um documentário. O mesmo vale para meu avô, se investirmos no assunto. Eu poderia ter criado um avô e, ainda que não seja este o caso, utilizei imagens reais de outros grandes personagens da História para o representarem, também aqui, ilusão.

Os Cavalos de Goethe não passam despercebidos. Artur Omar abriu a sessão, apresentou seu filme e nos deixou à distensão do tempo. Seus cavalos e homens se tornaram pinturas, retratos vivos do presente que se descortina na tela. O que vemos é uma produção sem definição – ou joguemos o quase finado termo ‘videoarte’ – onde, a partir de um evento real faz se a desconstrução e nos permite outro olhar; força-nos a enxergar diferente, sentir diferente.

Ao tempo que é incômoda a lentidão das imagens, não conseguimos fechar os olhos. Eu já vi alguns trabalhos deste artista e já o estudei um pouco na faculdade, então fui preparada. Imagino que a primeira vez com esse filme pode ser impactante. Alguns saíram da sala. Cavalos e homens montados num jogo no Afeganistão. Uma platéia assiste. Nós assistimos a platéia que assiste e ao espetáculo dentro do filme. Os efeitos visuais nos atraem quase com morbidez. Não conseguimos não ver. Também lembrei de Eadweard Muybridge lá no século XIX – antes do cinema ter nascido oficialmente – que usou o cinematógrafo para registrar justamente o movimento dos cavalos, das articulações, dos músculos num hipódromo. Esse registro era puramente científico. Com Artur Omar, estávamos quase frame a frame. Lembra um pouco as pinturas de Caravaggio, com a profundidade da fotografia, seus tons, os contrastes de luz e sombra agora num ambiente com luz natural. E as interrupções de ritmo com frases encadeadas para associarmos, a música irregular, solavancos de áudio e visual, sempre um exercício de apreensão e vislumbre.

Também aqui não podemos rotular. O que é isso, uma instalação? Talvez ficasse melhor numa sala escura sem cadeiras, numa exposição. Mas aí ninguém veria o trabalho completo, mas frações. Uma ficção? Ele certamente manipulou e subverteu a imagem. Um documentário? Estamos tratando de fatos reais com pessoas reais e tema real.

Diante de tantas questões, o que menos importa é a resposta. A grande chave dos filmes está na verdade que imprimem em nós. E todos os filmes citados são felizes nisso.  Conseguimos adentrar em seu universo, nos deixar levar pelo que vemos, ainda que as sensações sejam diferentes em cada obra. Estes filmes estão bem alicerçados em seus sistemas de coerência e são híbridos, ultrapassam as barreiras da taxonomia e podem seguir livres, cativando e se deixando consumir por quem os aprecie.

* Mocumentary ou pseudocumentário é o 'gênero' de filmes com estética documental, mas que tratam de temas fictícios.

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