Pensando em Cinema...

by - setembro 06, 2009

O que nos faz querer investigar a vida alheia como mais interessante que a nossa? A função do documentarista enquanto pesquisador vem sendo essa desde muito tempo. Esse desbravador, esse antropólogo, etnógrafo que registra em sua câmera costumes, cultura, como um armazenamento de estilo de vida, de estudo biológico e social de uma época a ser relembrada em retrospectivas e homenagens futuras. Mas o que se espera quando essa investigação é interna, é autóctone, autofágica? Este falar de si para si, essa exploração do sujeito documentarista ao objeto documentarista também atrai a atenção do espectador. Mas, de onde surgiu essa redescoberta do eu nos filmes?

Essa nova categoria de cinema de autor no documentário não pode se considerar uma vanguarda. O que há é uma conseqüência histórica da aproximação da câmera ao sujeito que a utiliza, do que é possível descobrir primeiro ao seu redor, dentro de sua cultura então ali vivida e depois do que está dentro de sua casa, numa busca de se redescobrir, se reinventar, desnudar a alma dos familiares, a própria.

Esta nova fase do documentário se reflete não apenas no cinema, como no jornalismo, nos programas de tv, nos reality shows, na internet. O que se busca ao ligar a tv em casa é investigar a vida de alguém, como ratos de laboratórios, esperando desvendar seus momentos mais íntimos, suas verdades, o que se tenta esconder, como se vive. É a fechadura da casa ao lado, que na verdade é muito similar à sua, mas enquanto você não descobre isso, tudo soa mais interessante. Essa também é a descoberta de uma nova forma de pensar a sociedade, independente do título que se dê a ela. É a pós-modernista do homem perdido, é a revolução dos costumes com novos modelos, padrões, rompimento de valores antes estagnados de tão estabelecidos. Se o homem está perdido em si, não vai buscar se reencontrar no que lhe é distante, mas buscará o que lhe é parecido, próximo, para que não se perceba só e uno, mas em um grupo que lhe abrace.

Se os reality shows são a janela para a descoberta do outro – que se camufla e esconde no próprio excesso exibicionista – é também reflexo da própria vida de quem os assiste: o que se busca nesses programas é a identificação com os personagens reais daquela história real. É a vida real na tv, no cinema. Não só ali e talvez hoje até mais importante, a liberdade de expressão na internet, a democratização de quem a ela tem acesso é o veículo onde mais se expressa o que quer e, em grande parte das vezes, o que se exibe é a intimidade.

Essa expressão da vida de improviso, de capturar o momento real veio de muito cedo, dos Lumiére, Vertov, do início do que entendemos como cinema. A própria ficção tende, inúmeras vezes, a criar identificações nos personagens com base no que se vive, trazendo ao espectador algo que lhe pareça próximo, ainda que ficcionalizado. Aí estão os filmes de ficção, os seriados, as novelas (mais do que nunca). Mas, independente do que se procure definir como real, verdade ou qualquer palavra cujo peso e responsabilidades parecem maiores ao documentarista ou repórter, muitas vezes, vive-se muito mais a ficção na grande tela do que o espaço real que antes afastava o espectador da cadeira do cinema. Entretanto, ainda assim, existe esta barreira do gênero e algumas vezes, o alívio de que o que se vê numa ficção não é real.

É esse novo momento que o documentário parece viver. Não ir tanto atrás de animais selvagens em florestas longínquas, tribos nos confins vivendo seu dia-a-dia sem perturbação dessa cultura colonizadora, mas um retrato da própria cultura do cinema, de quem queria se esconder nas câmeras para trazer o outro e que agora ao contrário – através de si, exposto, abraça o público que se descobre.

Pode parecer que ao público não faça diferença; continua sendo voyeur de uma vida que não é a sua. Mas quão maior é seu interesse ao perceber como vivem e pensam outras pessoas de seu tempo, as pessoas comuns, como é imensa ou até distante a identificação com quem lhe é próximo, é um estudo social do eu por eu mesmo, repleto de falhas, as assumindo e o mais importante: permitindo a conclusão inacabada à quem o assiste. É em busca disso que esse espectador vai conhecer esta safra de filmes e assim o cinema documental retorna com peso de desafio e novidade. Mas nada mais é senão espiar a janela do vizinho e ali encontrá-lo junto a um espelho.

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3 Comentários

  1. Como sempre muito bom filha . Fico feliz em ler um texto assim com tanta riqueza na forma de expressão, faz com que nós leitores possamos entender um pouco e admirar cada vez mais voce.
    Beijos
    Mamis

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  2. Tati, seu texto está de altíssima qualidade. Mistura o acadêmico com "documentário para dummies". Tem tudo para estar em uma grande publicação. Repasse ele para as pessoas do meio! Parabéns e continue instigada, atenta, observadora e tão cheia de vida. Um beijo!

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  3. "Je est un autre"!
    mademoiselle Reuter, foi com muita atenção que li as suas reflexões a respeito do estado atual do documentário e da progressiva passagem da figuração da alteridade à auto-representação ou representação centrada no Eu. Creio que as raízes e ramificações a este fenómeno podem ser procuradas também na tradição da autobiografia que tomou conta das práticas literárias e artísticas da Europa a partir do romantismo. Mas as tendências vislumbradas, apontadas e analisadas por ti no campo cinematográfico têm, com certeza, sua peculiaridade ligada à contemporaneidade e são efetivamente corroboradas, ano após ano, por novas propostas, novas experiências com a câmera em todas as mãos.
    Adorei o tom ensaísta do seu texto, sua sagacidade, a profundidade na reflexão, a elegância do estilo.
    Subscrevo abaixo deste trecho:
    É esse novo momento que o documentário parece viver. Não ir tanto atrás de animais selvagens em florestas longínquas, tribos nos confins vivendo seu dia-a-dia sem perturbação dessa cultura colonizadora, mas um retrato da própria cultura do cinema, de quem queria se esconder nas câmeras para trazer o outro e que agora ao contrário – através de si, exposto, abraça o público que se descobre.

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