Crítica: Bacurau - porque você deve assistir o filme agora

by - outubro 27, 2019

Bacurau conseguiu tudo. Ovacionado em Cannes, ganhou relevância no Brasil, também aqui adorado pela crítica e público. Muita gente foi assistir na expectativa de conhecer um faroeste nacional, uma espécie de guerra no sertão nordestino, sem aquela ideia de miséria e sofrimento tradicionais. E Bacurau cumpre o prometido. Traz uma espécie de filme de ação brasileiro com humor, violência e crítica política. O filme passa tão rápido que saímos um pouco atordoados, sem sequer saber se entendemos tudo, se aceitamos, se gostamos. É uma obra complexa, que requer o tempo de digestão do espectador atento para que se processem as ideias, a narrativa, a produção.


"A cidade do povo colonizado (...) é um lugar de má fama, povoado por homens de má reputação. Lá eles nascem, pouco importa onde ou como; morrem lá, não importa onde ou como. É um mundo sem espaço; os homens vivem uns sobre os outros. A cidade do colonizado é uma cidade com fome, fome de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma vila agachada, com uma cidade sobre seus joelhos".[1]


A relevância, a coragem e a necropolítica.

O interessante deste filme não está na forma de contar, na estrutura do roteiro e diálogos, mas na estória. Uma cidade pequena, apagada do mapa, cuja importância renasce no interesse das campanhas eleitorais regionais e em seus habitantes, que insistem em tê-la para si. Por ser esquecida e escondida do mundo, Bacurau é o reflexo de quem mora ali, uma terra de gente com raça, cujo conservadorismo da teoria se sobrepõe a uma comunidade mais humana e, por isso, liberal e diversa. Nesta cidade, tudo se mistura e todos se conhecem. A fraqueza da falta de privacidade será a mesma força que unirá todos contra o que quer que venha de fora: o prefeito ocasional e usurpador, os motociclistas do sudeste que anunciam, ao instinto dos nativos, caos e destruição.

Kleber Mendonça Filho havia feito Aquarius (2016) e anos antes, O Som ao Redor (2012). Os três trazem em seus temas, o tom de crítica social de sempre, assunto que move o diretor. Neste último, toca numa ferida recém-aberta do brasileiro: o desgoverno. Rodado antes das eleições de Bolsonaro como um ato premonitório, o filme anuncia um passado-presente do Nordeste com a ameaça externa do extermínio imediato. Com um apelo de distopia em uma encruzilhada de comunidade em harmonia versus o invasor supremacista atroz, a primeira confusão e lucidez do filme é justamente essa: entender em que tempo estamos, quando o futuro da ficção parece um pouco com qualquer época.

“To create today is to create dangerously. Any publication is an act, and that act exposes one to the passions of an age that forgives nothing [2]”. 

Albert Camus nos introduz a ideia de impossibilidade da neutralidade daquele artista do século XIX no que vive o século XX em um discurso na Universidade de Uppsala em 57. Ele defende que o artista contemporâneo não pode se eximir da verdade de seu tempo e que, ainda que também não seja dele a função de permear um combate, é uma obrigação não ser neutro ou apático.

Camus insiste, indicando que a arte "is nothing without reality and without which reality is insignificant"[3] (não é nada sem a realidade, da mesma maneira que a realidade sem a arte é insignificante). Essa construção de sentido configura a produção artística: ela promove uma relação quase simbiótica entre um e outro e, em qualquer instância, manifestação ou obra, entre efeito e causa ou dependência. Essa assertiva não pretende, contudo, obrigar o artista a defender uma arte ‘realista’, que represente ou espelhe de alguma maneira o concreto, o que se absorve no cotidiano: art is neither complete rejection nor complete acceptance of what is [4].

A trajetória de Kleber Mendonça parece reafirmar as ideias de Camus, a constituição de seus filmes evidencia uma discussão constante sobre seu mundo, sua realidade sem perder a poesia. Ao mesmo tempo, reforça a soberania professada por Achille Mbembe e Bataille, essa recusa em aceitar os limites a que o medo da morte teria submetido o sujeito. O mundo da soberania, Bataille argumenta, "é o mundo no qual o limite da morte foi abandonado. A morte está presente nele, sua presença define esse mundo de violência, mas, enquanto a morte está presente, está sempre lá apenas para ser negada, nunca para nada além disso."[5]


Esta é a única saída para Bacurau, cidade que se nega a morrer e recorre a si própria, como numa guerra, quando as forças políticas desaparecem e sobreviver a qualquer custo se torna a solução para cidades invisíveis. O estrangeiro, o que vem de fora e se impõe como superior, hierarquiza a vida e transforma tudo em jogo de tiro ao alvo – no filme e na realidade dos drones no Rio de Janeiro, assassinos de comunidades pobres. A mira da ficção e do cotidiano estão, invariavelmente, apontadas para aqueles de outra classe social e, portanto, outra cor, como se comprova na história do país. A luta é com base na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é "a condição para a aceitabilidade do fazer morrer".[6] A equipe vilã de Bacurau, os jogadores, vem, por fim, numa condição de contrato assinado com o poder local, que só vemos em tempos de festa e contenção – repressão – social.

O acerto na descrição de Mbembe é atroz e realista em uma obra distópica de ficção. Essa própria ideia de ficção científica no cinema traz sempre uma penumbra de passado ou presente. O futuro dos filmes é, no máximo, uma repaginação do presente sob os olhos da tecnologia e meio ambiente. No filme de Kleber, vem no desgoverno do presente e na desimportância dos locais, objetos, alvos do colonizador moderno, que faz das suas conquistas, jogos de azar e crueldade: "um elemento crítico a essas técnicas de inabilitação do inimigo é fazer terra arrasada (bulldozer): demolir casas e cidades; desenraizar as oliveiras; crivar de tiros tanques de água; bombardear e obstruir comunicações eletrônicas; escavar estradas; destruir transformadores de energia elétrica; arrasar pistas de aeroporto; desabilitar os transmissores de rádio e televisão (...)".[7]

Por isso, é difícil não entender Bacurau em todas as suas nuances. É coerente que o ponto de revolta ou defesa da cidade seja alguém procurado por crimes de morte. É realista, nesta estrutura ficcional, porque é do dia a dia do brasileiro de cidades esquecidas, de comunidades divididas entre os poderes da milícia, do tráfico e da polícia. É, sem dúvida, um tratado sobre biopoder como um teste de laboratório – não fosse tão realista e ameaçador. Por fim, a morte do outro não é nada, que não a satisfação de vencer um campeonato ou a sobrevivência; "(...) o horror experimentado sob a visão da morte se transforma em satisfação quando ela ocorre com o outro. É a morte do outro, sua presença física como um cadáver, que faz o sobrevivente se sentir único. E cada inimigo morto faz aumentar o sentimento de segurança do sobrevivente."[8] 

Na guerra do filme de mentira e da vida de verdade, nunca a assertiva fez tanto sentido e entender isso, é confirmar a existência de uma realidade triste.


[1] FANON, Frantz in MBEMBE, Achille. Necropolítica.
[2 a 4] CAMUS, Albert. Create Dangerously. Penguin Books. United Kingdom, 2018.
[5 a 8] MBEMBE, ACHILLE. Necropolítica.

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