Rio de esgoto
foto de Betinho Casas Novas / Estadão Conteúdo |
Como sucumbiu, se desfez, caiu
pela quarta vez a maldita ciclovia Tim Maia. Coitado do cantor, que batizou sem
nem saber, uma obra superfaturada que nunca funcionou e matou gente. A ciclovia
que atrapalha a vista pro mar, que tem nas encostas da avenida Niemeyer uma das
imagens mais impressionantes da cidade, nunca serviu pra nada. Estragou uma
paisagem que em dia de ressaca é mais do que qualquer poesia. Uma via que faz
andar de ônibus valer a pena, porque você vê de mais alto as ondas lambendo as
pedras, sensual e sensorial como já disse uma vez.
Essa obra poderia ser o retrato
da cidade. Essa obra agora fadada ao esquecimento e ruína, porque desistiram
finalmente de lhe reconstruir mais uma vez — não é redundância. De remendar
com band-aid o que precisaria de 80 pontos. Ou tiros.
Sim, porque a segunda-feira não
foi fácil. Ontem, além das chuvas, soubemos que doze militares cercaram um
carro de passeio no domingo e tentaram assassinar uma família negra em um
bairro pobre. O pai morreu. Os soldados riam enquanto atiravam. O presidente
apaixonado por militares e armas não se pronunciou. O prefeito, o governador — nada.
Pensando assim, parece vingança esse monte de água caindo do céu por essa
sequência de más escolhas do pessoal dessa terra. Da maior parte, claro — há
gente boa na minoria dos votos.
O problema — um deles — é que
tudo se confunde em discurso e imagem. É ver o repórter comentando sobre o lixo
que desce da Rocinha e para na rua. Ele diz que precisamos ter consciência,
saber onde jogar o lixo. Eu me perguntei, porque realmente não sei, se há
coleta de lixo lá pra cima. Pedir consciência e higiene no asfalto onde passa
caminhão me parece fácil. E de novo, o repórter não está de todo errado, só não
lhe ocorreu pensar um pouco mais, no amplo espectro. As chuvas assolaram a Zona
Sul e a Barra, zonas de dinheiro da cidade, onde a classe média e alta se
concentra. O alarde e desespero foram ao nível everéstico, mas e as tragédias cotidianas e esquecidas da ‘zona oeste
profunda’, como diz um amigo — e da zona norte? Choveu um pouco menos, mas
sempre alaga como alagou, sempre mata como matou. Pessoas também usaram barcos
no asfalto.
Em fevereiro foram seis mortos.
Agora em abril, dez. O prefeito diz, culpado, que não foram prudentes, não
executaram as medidas para sanar ou prevenir a repetição do começo do ano. Não
entendeu que um raio cai duas vezes no mesmo lugar. Ou dez. Discursos como esse
se repetem à exaustão, como a desculpa de que ‘nunca choveu forte assim’.
Ninguém se lembra dos cortes de verbas de conservação da cidade lá em 2017.
Pois é, teve outra chuva atípica naquele ano.
Parece que os cariocas cansaram, nós, os retirantes, também. O prefeito
pede fé inteligente, e isso intriga, a junção das palavras. Fé
inteligente em sua gestão é um paradoxo. Vale até citar toda a fala da matéria,
foi realmente brilhante:
- Peço para todos sermos prudentes. Termos uma fé inteligente. Em época
de chuva, de temporal, não vamos andar na beira de morros e onde tocam sirenes,
não vamos construir casas em talvegues, não vamos botar a mão em postes, nem
vamos a praia quando tiver trovão.
Se o problema do Rio fosse só a
chuva catástrofe de ontem, estaríamos bem ferrados, mas talvez mais pacientes e
esperançosos. Mas, foram dez mortos à toa entre ontem e hoje. Foi mais um negro
fuzilado à toa na cidade, ao escárnio e crueldade de militares. Parece que foi
engano, disseram por aí. Como se mata alguém com oitenta tiros, desarmado, em
frente à população e à família da vítima, rindo… por engano? O assassinato foi
cruel e ele sozinho já desesperaria qualquer humano que assim se definisse. As
chuvas foram um adendo, um negrito em um texto quase apagado de tão copiado por
aí: a cidade está entregue, acabada, esquecida. Vale adicionar que está
violenta como sempre, assassina como nunca e triste. Porque é esse o
sentimento. Estamos no esgoto das belas paisagens recortadas por lindos morros
com a praia ao fundo e a vista pro Cristo e Pão de Açúcar. Mas não esqueçamos:
estamos no esgoto.
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