Crítica: Big Jato (2015)

by - junho 07, 2016


Quem acompanha a trajetória de Claudio Assis percebe uma gradual transformação de seu cinema sem perder autoria e qualidade. Se com Amarelo Manga (2002) e Baixio das Bestas (2006) a violência e o sexo imperam na caracterização de uma sociedade em declínio, é de sonho e poesia que vivem seus personagens nos últimos dois filmes, Febre do Rato (2011) e Big Jato, o último sendo lançado esse mês no país.

O filme traz a história de Chico (Rafael Nicácio), um adolescente que ajuda seu pai Francisco (Matheus Nachtergaele), desentupindo fossas no interior de Pernambuco. Eles vivem em Peixe de Pedra, uma pequena cidade de chapada com uma rádio em que trabalha seu tio Nelson, também interpretado por Nachtergaele, presente em todos os filmes do diretor. Enquanto Francisco espera que Chico se desenvolva na matemática para lhe ajudar nas contas, o garoto escolhe a poesia, se aproximando de seu tio anarquista que satiriza o irmão nas locuções radialistas. Este duelo de matemática e literatura é próprio da distinção entre sonho e realidade e é nesse ambiente que encontraremos o príncipe, em uma participação especial de Jards Macalé como uma figura quase felliniana, dando a Chico a importância de sua imaginação e criatividade para a vida.

Chico (Rafael Nicácio) e Francisco (Matheus Nachtergaele)

Logo no início percebemos que o filme transitará entre o olhar do adolescente e de seu pai e tio, quando o garoto no caminhão pipa do pai – o Big Jato – pergunta sobre os excrementos, se todo mundo faz, por mais diferente que seja. O pai segue pacientemente explicando como a uma criança que questiona o porquê das coisas, enquanto no rádio ouve seu irmão em verborragia falando sobre o rock e desqualificando o trabalho honesto sempre defendido pelo primeiro, sugerindo a anarquia como modo de vida e anunciando a chegada d’Os Betos, uma banda que haveria influenciado ninguém menos que Os Beatles. O perfil de cada personagem é construído em equilíbrio e ali percebemos a formação de um adolescente que precisa tomar seu próprio rumo, se quiser viver do sonho.

Adaptação do livro autobiográfico de Xico Sá, Big Jato era o caminhão pipa de seu pai e muito do que está no filme parece verdade. Os diálogos são inteligentes e cheios de metáforas que se traduzem em graça pelas expressões locais, com um escritor cearense e um diretor pernambucano não seria acaso. Um dos pontos fortes do cinema de Cláudio é o próprio texto, sempre ágil, direto e carregado de conceitos. Aqui é suavizado para encarar a adolescência em sua complexidade e, ainda que alguns atores pudessem carregar em força – os irmãos de Chico – conseguem sustentar a trama sem maiores prejuízos. Os Betos não existiram, a banda foi uma alternativa para a produção do filme que não podia arcar com os direitos das músicas da banda inglesa.

Nelson :: Matheus Nachtergaele
Matheus Nachtergaele encarna os gêmeos cuja comunicação se dá em uma troca surda, já que nunca se encontram e sabem um do outro pela rádio e por Chico, que transita entre os dois. As interpretações são puro deleite e não há como não lembrar Peter Sellers e seus personagens camaleônicos de Dr. Fantástico (Stanley Kubrick, 1964). Os dois amam e cuidam de Chico, de alguma forma lhe fornecem os meios e visões distintas e radicais de mundo tão caras à própria formação de um jovem, até que seja capaz de trilhar o próprio caminho. A família de apoio ganha a força de Marcélia Cartaxo, atriz experiente e de peso, mãe de Chico que tem a paciência para manter uma casa de essência machista e, ao mesmo tempo, não se permite tolerar o alcoolismo do marido que se anuncia à esquina. Este prefere a cachaça a pensar que sua vida se resume à merda e fossas, cada vez mais escassas à medida que se constroem banheiros dentro de casa, fruto de um desenvolvimento local em uma cidade que ainda carece de sinal de celular.

É com doçura que Cláudio Assis trata das questões árduas ao sustento familiar, entre a sujeira própria que produzimos com nossos excrementos e a naturalidade de conviver e tratar deles. A perspectiva do adolescente corrobora esta nova trajetória mais lúdica e leve, rompendo quase totalmente com o formato marginal e agressivo dos primeiros filmes. Com esse, o diretor se destaca, mantendo suas inquietudes e as ampliando em público, narrativa e pertinência. É mais importante do que parece à primeira vista, é mais uma grande e relevante exibição de um nordeste puro, cultura que poucos conhecem e seguem rindo apenas por ouvir um sotaque diferente. A ampliação do olhar para um Brasil fora do litoral e da mídia e fundamental para a constituição ampla de cultura, identidade e nacionalidade, hoje quase reduzida às cidades mais caras. Grande filme.

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