As montanhas se separam

by - junho 23, 2016


Há uma urgência nos filmes de Jia Zhang ke que não se percebe de imediato. É uma reflexão que chega um tempo depois de ver um de seus filmes, como uma latência que se dissolve em ação, em uma curiosidade sobre o próximo e a busca por entender por que a dificuldade e proibição de serem exibidos na China. Em As montanhas se separam, esse sentimento permanece, se reafirmando com uma sutileza que pouco se percebe nos filmes de hoje.

Uma mulher, Shen Tao (Tao Zhao), em três décadas: 1999, 2014 e 2025. Dos vinte e cinco aos cinquenta anos, dividida entre dois amores, em família e sozinha, entre gerações e ciclos pertinentes à vida de qualquer um. Vemos uma China em transição a partir de dentro, de quem a conhece bem e sem firulas, sem os exageros dos filmes de ação, grandiosos efeitos especiais ou uma trama esdrúxula, que surpreenderia mais pelo espetáculo e hipérboles do absurdo do que em seus detalhes do cotidiano. É nisso que reside sua graça e aparentemente em todo o cinema de Jia Zhang ke, ao tratar da vida, da cultura e do viver chineses.


O roteiro, tal como em Em busca da vida (Still Life, 2006), ensaia uma preparação para o espectador e logo nos entrega a ele, nos deixando com nossas interpretações sobre a obra. Ali, há uma saga de um homem e depois de uma mulher – também interpretada por Tao Zhao – e buscamos as conexões possíveis, ainda que não necessariamente lineares ou literais. Se no início deste Montanhas, pensávamos que haveria três protagonistas, ao decorrer da narrativa permanecerá a dúvida, ainda que a criação de outros personagens fortes indique novos rumos. Esta libertação ficcional é própria do diretor que nos toma pela mão, mas nos deixa seguir sozinhos através de sua história.

A divisão narrativa em capítulos é reforçada pelas mudanças em cenário e tecnologias, construindo um pano de fundo, o contexto necessário à passagem do tempo. Mas esta é uma história que transcende suas marcações de era. O que se imagina hoje do futuro – e está espelhado no filme – é mero detalhe se pensarmos nos bons filmes que tratavam do tempo décadas atrás. Tecnologia é figurino, a força desta história está nas pessoas e em suas relações, sempre universais e, se for possível o jogo de palavras, atemporais. Acompanhando a transição dos anos está a montagem, fluida e pausada, dando o tempo de apreensão e entretenimento - fugindo dos cortes de videoclipes - enquanto elimina a monotonia, e a fotografia, com luz natural em boa parte da duração, reforçando seu caráter realista e exibindo um país grandioso em todos os seus aspectos. Há paisagens deslumbrantes de uma natureza marcada pelas estações do ano, há os planos que posicionam o humano com relação ao que o cerca - de grandes prédios e estruturas, construções e minas ao rio Amarelo e a discrepância que outro continente e cultura que impactam em uma tradição de hábitos milenares.


O cinema do diretor ilumina um país continental para muito além da propaganda comunista. É quase a antítese de uma política que omite seus problemas de base e esbanja um ideal de governo que não corresponde a sua realidade. É daí, provavelmente, o embargo e a dificuldade de exibição no país. Mas Jia Zhang ke ultrapassa fronteiras de tal forma que podemos saber mais dele a partir de um documentário dirigido por Walter Salles com concepção dele e de Jean-Michel Frodon. O impacto deste cinema ainda não implica em grandes bilheterias no Brasil, mas já não passa despercebido. 

Há um paradoxo nesta liberdade vigiada de produzir os filmes no país como uma jogada cruel de suas políticas ou talvez uma brecha sempre encontrada pela produção para trabalhar, e quando conseguem ultrapassar suas barreiras, tornam público algo novo e, em oposição à censura, libertador. É uma nação que enfrenta um progresso ao alto custo da fragilização e fragmentação dos relacionamentos, com a imposição do capitalismo como modelador de comportamentos e uma névoa que parece ser de poluição e poeira – ou seria a própria cegueira imposta que tenta se dissolver? – ocupando todos os vazios e remarcando um passado rígido. Talvez a urgência de seus filmes se consolide nisso, nessa impressão que adquirimos – depois de filmes como este – de que já deveríamos tê-lo visto antes, como se nossa ânsia de participar daquela história decorresse de nosso parco conhecimento sobre uma cultura tão rica, distinta e que nos é similar em sua própria humanidade. Estamos atrasados. 

Posts relacionados

0 Comentários