Os inimigos da dor
Ambientado nos anos 80, Os inimigos da dor traz uma estranha
fábula sobre um homem torto na vida que tenta resolver um problema pessoal e
esbarra em outros um tanto maiores do que ele próprio.
Um alemão (Félix Marchand) está perdido
em uma Montevidéu suja, desolada, vazia e eternamente escura, mesmo quando é
dia. Ele não fala espanhol e tudo o que lhe resta são garranchos do idioma e gestos de desespero com
que tenta se comunicar. Em busca da mulher que lhe abandonou na Alemanha e sem
um tostão, rouba a carteira do segurança da rodoviária (Lúcio Hernández) que
vive uma crise conjugal. Suas histórias se cruzarão mais tarde, somando-se a de
um adolescente abusado sexualmente por outros homens, um sujeito depressivo e
deprimente (Pedro Dalton) que pouco fala e tenta ajudar a todos, ainda que se
lamente ou preveja um futuro ainda pior do que o presente e um culto religioso ao estilo Igreja Universal meio sem propósito.
Nada parece ir bem para os quatro
e mesmo assim nos apegamos a eles, porque juntos conseguem se defender e
tentarão resolver a vida do alemão, que agora quer ajudar o infeliz garoto. Com
interpretações um pouco exageradas mas pertinentes ao clima de estranhamento,
ótima fotografia e trilha sonora, o filme parece ter tudo, até que algo começa
a incomodar: sua estrutura narrativa.
O roteiro é a mãe de qualquer
produção, é de onde parte a história e o motivo para filmá-la, ainda que se desconstrua sob improvisos no futuro. Em Inimigos, há um grave
problema de foco, há uma crise no direcionamento, a trajetória dos personagens seguem sem rumo, como se houvesse uma dificuldade em definir seus destinos e
ficamos à mercê de desdobramentos forçados. Por um momento pensei que seria
como Depois de Horas (Martin
Scorsese, 1985), quando Paul Hackett (Griffin Dunne) não consegue chegar a sua
casa depois de uma longa noite cheia de acontecimentos insólitos. Na obra de
Scorsese há uma razão para cada sequência e o próprio protagonista não entende
as loucuras em que consegue se meter, atravancando seu caminho. Tudo ali funciona, tem sua razão, inclusive a onda de situações por que passa nosso herói. Neste primeiro
filme de Arauco Hernández, o alemão nunca consegue falar ao telefone com sua
mulher para reencontra-la, mas de repente o foco está no garoto ou no segurança
da rodoviária (ou seria aeroporto?), ou no fato do protagonista não estranhar uma cidade onde nunca pisou e esta lhe parecer quase corriqueira, não fosse a
dificuldade da língua. Ele sempre parece mais irritado do que espantado com aquilo tudo.
Como filme de diretor estreante,
é bem feito tecnicamente e chama a atenção. É preciso aguardar uma nova
produção para entender sua forma de contar uma história e confirmar se essa
dissociação é fruto desta narrativa em particular ou será uma marca de estilo,
apesar de falho. O fato é que assistimos muito tempo de introdução, conhecemos
os personagens, mas o clímax parece nunca chegar. Em seu ápice há outra
história, um desdobramento de um personagem secundário e um desfecho à fórceps
com a construção de uma relação de amizade pouco plausível para ser duradoura.
É um filme possível, mas passa a
impressão de estarmos sempre nos primeiros capítulos de um livro policial que
tenta desvendar um crime, mas no final nem sabemos se o delito foi realmente
cometido. Sua montagem lembra um pouco a agilidade da televisão e as transições e
efeitos de tempos atrás. Esse ritmo completa o clima do
filme e traduz a década em que a história se passa. Não chega a ser um tempo perdido no cinema, mas vá sabendo que há falhas
em estrutura e motivação dos personagens para tantas situações desconexas. Pelo
humor ácido e estranho, pela dificuldade do idioma e suas alternativas e por alguns silêncios, de repente vale
o ingresso.
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