Tribunal*

by - outubro 04, 2015


Conversando com um colega no trabalho, falávamos sobre cinema e ele dizia que para um filme ser bom, precisava ficar na cabeça por alguns ou vários dias, para ser digerido, lembrado. Não precisaria ser por completo, mas alguma cena, alguma fala, a história, a fotografia, um elemento que fosse relevante o suficiente para se prender em nós. Concordo com essa ideia e sem pensar muito, este filme ficou comigo a semana inteira, em busca de conclusão.

Tribunal é o longa de estreia de Chaitanya Tamhane. Ele conta a história do julgamento de um cantor e ativista social, Narayan Kamble (Vira Sathidar), que se apresenta nos bairros pobres de Mumbai e é também professor, acusado de incitar ao suicídio com suas músicas um jovem que trabalhava nos esgotos e foi encontrado morto. Acompanhamos o vai e vem do tribunal, os argumentos do Estado contra os da defesa e a trajetória de pouca sorte deste homem persistente. Em paralelo, vemos as rotinas da promotora Nutan (Geetanjali Kulkarni) e do advogado de defesa Vinay Vora (Vivek Gomber), numa clara distinção entre tradição e globalização de uma nação em desenvolvimento.


À primeira vista, ficamos incomodados com o ritmo moroso do filme. As sequências parecem se estender além do necessário, como se fosse um problema de corte. Em determinado momento nos sentimos afundando na cadeira, frente àquele descompasso da rotina do tribunal em protelar um julgamento aparentemente simples, mas que é constantemente postergado por argumentos absurdos da promotoria com base em leis retrógradas e sem aplicação lógica na sociedade contemporânea. Em um paralelo com as discrepâncias do discurso tradicionalista no tribunal ir de encontro à exposição dos fatos por parte da defesa – que já resolveria o absurdo que é a acusação, vemos as rotinas pessoais dos advogados que corroboram seus argumentos quando estão em ação. Nutan atende aos costumes de uma sociedade patriarcal e machista de classe média, em que a mulher deve cumprir todas as atividades do lar e da família de forma submissa e ainda trabalhar. Ao mesmo tempo, Vinay Vora, que retruca a aplicação de leis vitorianas, frequenta bares e restaurantes onde toca música brasileira e internacional, compra em delicatessens caras, se veste e vive como nós e, neste sentido, é mais distante da cultura local.

A necessidade do Estado se eximir da culpa da morte de seu funcionário e imputá-la em um cantor de rua é justificada quando vemos as condições de trabalho da vítima, ao mesmo tempo em que reforça a manutenção da sociedade de castas com uma justiça de desigual proporção. A miséria é eviscerada em uma exposição crítica do sistema social indiano: um trabalho que já seria de difícil execução com todo o suporte e que, por ser destinado às classes mais inferiores de uma sociedade verticalizada, é feito de forma ainda pior, igualando estes homens a baratas. Com um curta no currículo e este longa, o diretor chamou atenção por onde passou. Tribunal levou 16 prêmios até agora e outras 5 indicações, ao mesclar atores e não atores em um cinema naturalista que nos faz questionar até onde é ficção o que está diante de nós. Essa dramaturgia é o trunfo de um filme que nos carrega para uma conclusão amarga e irônica. Um detalhe extra da produção: Usha Bane, a viúva Sharmila Pawar é também viúva na vida real de um homem que morreu nos esgotos.


Saí do filme pensando na última sequência e em como ela tinha deixado todos perplexos e alguns indignados. Depois de um tempo, ficou clara sua razão e o filme foi se fixando ainda mais, em suas nuances, interpretações, discursos e construções brilhantes. Os absurdos de uma justiça que se assemelha à nossa e nos faz ver uma miséria que talvez também pudesse – porque a Índia feliz ou infelizmente supera em descaso – nos ser comum, traz outras tantas questões sobre cultura, sociedade e tradição. Sair de uma Índia exótica e vê-la em seu dia a dia é o que nos aproxima e causa interesse. Um presente, esse filme.

Essa crítica e a cobertura completa do Festival do Rio estão no Blah Cultural! :)

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