Que horas ela volta?

by - setembro 10, 2015

Lançado nos cinemas semana passada, Que horas ela volta chegou fazendo barulho por duas razões principais: a qualidade inquestionável do filme e a polêmica em torno do debate com a diretora Anna Muylaert após exibição em Recife. O mais interessante é que foi justamente por ser bom que todo o resto aconteceu.

O filme conta a história de Val (Regina Casé), uma empregada doméstica pernambucana que trabalha para uma família de classe alta em São Paulo. Há anos no serviço, Val mora onde trabalha, recebe a notícia de que sua filha Jéssica (Camila Márdila) irá à cidade prestar o vestibular e sua chegada rompe com o equilíbrio da casa. O filme promove um retrato fiel não apenas da classe alta, como um recorte amplificado das diferenças sociais e a delicada relação entre patrão e empregado. Frases como você é como se fosse da família são utilizadas de forma inócua, sem se perceber um preconceito gritante no quase, além de ser uma mentira descabida. Enquanto não há Jéssica, há o afeto maternal de Val com Fabinho (Michel Joelsas), filho adolescente da família que também fará a prova, o ciúme interesseiro da mãe Bárbara (Karine Teles) e o pai bon vivant (Lourenço Muterelli) que espera a vida passar, já que vive de renda e não tem muito o que fazer.
A posição da mulher aqui é vista sob diversas óticas – faz lembrar imediatamente o também bom Casa Grande (Fellipe Barbosa, 2015), onde as relações de trabalho se confundem com um senso de superioridade explicado na diferença de classe. Aqui vemos uma mulher que receberá a filha que vem do Nordeste, sempre estigmatizado pelos sudestinos educados. Jéssica, ao contrário do que se espera, é letrada, impetuosa e com um caráter contestador, se surpreende e se incomoda com a submissão confundida na obediência da mãe na casa. Ela representa a quebra de paradigma, o esforço de alavancar a vida com o próprio suor e os estereótipos aqui muito bem construídos dos arquétipos nacionais não são gratuitos, mas representações de uma realidade que não é novidade para ninguém. Bárbara, cujo nome não poderia ser melhor, age brutalmente e expõe uma franqueza que nos envergonha, o comportamento de tantos que conhecemos bem.

Val é maravilhosa, porque se descobre em transformação a partir dos novos conflitos. As duas, num dueto orgânico, escancaram suas verdades e segredos, que a distância da sobrevivência impediu a convivência nos primeiros anos de mãe e filha. Val é aquela que sai da cidade em busca de trabalho, em prol de uma qualidade de vida para os seus, como o herói que sai para a aventura com uma missão cujo fracasso é imponderável. Ao mesmo tempo, ao reconhecer o tratamento familiar que recebia como uma esmola de afeição que ninguém pede, mas  aceita como um hábito ruim, mais uma vez se prova dona de seu destino e reconhece uma saída para ela e a filha. Regina Casé incorpora a personagem como se fizesse parte de si, da mesma forma que Camila Márdila, uma atriz jovem, traz maturidade de interpretação singular. As duas acabam de dividir o prêmio de melhor atriz em Sundance.
E então, aconteceu o debate com Anna Muylaert após a exibição e os cineastas Cláudio Assis (Amarelo Manga) e Lírio Ferreira (Sangue Azul), alcoolizados, não permitiram que se continuasse a conversa. A situação foi tão gritante que virou notícia. O ponto do machismo se fez presente, ao tempo que um filme cujo foco está na mulher, dirigido por outra que é interrompida continuamente por outros igualmente talentosos, mas que não estão naquele palanque. A necessidade de chamar a atenção e estragar o evento não esbanja outra razão que não aquela de ocupar um panteão que não lhes pertence. É necessário dar o tempo e espaço devidos à mulher, especialmente quando já são dela. Para quem discorde da visão machista, uma das observações de Assis foi sobre a protagonista estar acima do peso – numa clara atitude preconceituosa não apenas com o gênero, mas com a imagem, reduzindo uma grande atuação a um aspecto físico insignificante.

Após a repercussão vieram pedidos de desculpas dos dois, bem como a decisão da Fundação Joaquim Nabuco de proibir por um ano a exibição de trabalhos e presença dos dois diretores na instituição. Mais uma vez Cláudio Assis se fez presente em sua retratação, não apenas assumindo o que lhe é devido, mas invertendo a discussão ao se colocar como alguém sendo atacado por pessoas caretas – o termo que define os conservadores também define em grande parte o machismo, ironia maior não há. Talvez o comportamento destes diretores não tenha sido conscientemente para atrapalhar o evento, mas é um fato estabelecido que a provocação reafirmou a velha cartilha do comportamento brasileiro em que o homem tem que estar à frente – ainda que pra isso precise atropelar quem estiver passando ou, simplesmente, calar a mulher que fala. Que horas ela volta? desbancou os eleitos a concorrer à vaga para o Oscar 2016. Todos os filmes eram de diretores homens.

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1 Comentários

  1. Nossa, fiquei com vontade de ver o filme. Na verdade, suas criticas sempre me deixam com vontade de ver os filmes kkkkk... Já tinha ouvido falar super bem desse filme, mas a maneira como você coloca explica as coisas sempre deixa tudo muito mais interessante :)

    O blog continua maravilhoso como sempre... Eu não comento as vezes porque fico sem saber o que escrever, mas sempre que eu quero uma boa recomendação de filme, venho aqui dar uma espiada.

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