Lançado nos cinemas semana
passada, Que horas ela volta chegou
fazendo barulho por duas razões principais: a qualidade inquestionável do filme
e a polêmica em torno do debate com a diretora Anna Muylaert após exibição em
Recife. O mais interessante é que foi justamente por ser bom que todo o resto
aconteceu.
O filme conta a história de Val
(Regina Casé), uma empregada doméstica pernambucana que trabalha para uma
família de classe alta em São Paulo. Há anos no serviço, Val mora onde trabalha,
recebe a notícia de que sua filha Jéssica (Camila Márdila) irá à cidade prestar
o vestibular e sua chegada rompe com o equilíbrio da casa. O filme promove um
retrato fiel não apenas da classe alta, como um recorte amplificado das
diferenças sociais e a delicada relação entre patrão e empregado. Frases como você é como se fosse da família são
utilizadas de forma inócua, sem se perceber um preconceito gritante no quase, além de ser uma mentira
descabida. Enquanto não há Jéssica, há o afeto maternal de Val com Fabinho
(Michel Joelsas), filho adolescente da família que também fará a prova, o ciúme
interesseiro da mãe Bárbara (Karine Teles) e o pai bon
vivant (Lourenço Muterelli) que espera a vida passar, já que vive de renda e não tem muito o que fazer.
A posição da mulher aqui é vista
sob diversas óticas – faz lembrar imediatamente o também bom Casa Grande (Fellipe Barbosa, 2015),
onde as relações de trabalho se confundem com um senso de superioridade
explicado na diferença de classe. Aqui vemos uma mulher que receberá a filha
que vem do Nordeste, sempre estigmatizado pelos sudestinos educados. Jéssica, ao contrário do que
se espera, é letrada, impetuosa e com um caráter contestador, se surpreende e
se incomoda com a submissão confundida na obediência da mãe na casa. Ela
representa a quebra de paradigma, o esforço de alavancar a vida com o próprio
suor e os estereótipos aqui muito bem construídos dos arquétipos nacionais não
são gratuitos, mas representações de uma realidade que não é novidade para
ninguém. Bárbara, cujo nome
não poderia ser melhor, age brutalmente e expõe uma franqueza que nos
envergonha, o comportamento de tantos que conhecemos bem.
Val é maravilhosa, porque se
descobre em transformação a partir dos novos conflitos. As duas, num dueto
orgânico, escancaram suas verdades e segredos, que a distância da sobrevivência
impediu a convivência nos primeiros anos de mãe e filha. Val é aquela que sai
da cidade em busca de trabalho, em prol de uma qualidade de vida para os seus,
como o herói que sai para a aventura com uma missão cujo fracasso é
imponderável. Ao mesmo tempo, ao reconhecer o tratamento familiar que recebia como uma esmola de afeição que ninguém pede,
mas aceita como um hábito ruim, mais uma
vez se prova dona de seu destino e reconhece uma saída para ela e a filha.
Regina Casé incorpora a personagem como se fizesse parte de si, da mesma forma
que Camila Márdila, uma atriz jovem, traz maturidade de interpretação singular. As duas acabam de dividir o prêmio de melhor atriz em Sundance.
E então, aconteceu o debate com
Anna Muylaert após a exibição e os cineastas Cláudio Assis (Amarelo Manga) e Lírio Ferreira (Sangue Azul), alcoolizados, não
permitiram que se continuasse a conversa. A situação foi tão gritante que virou notícia. O ponto do machismo se fez presente, ao tempo
que um filme cujo foco está na mulher, dirigido por outra que é interrompida continuamente por outros igualmente talentosos, mas que não estão naquele
palanque. A necessidade de chamar a atenção e estragar o evento não esbanja outra razão que não aquela de ocupar um panteão que não
lhes pertence. É necessário dar o tempo e espaço devidos à mulher,
especialmente quando já são dela. Para quem discorde da visão machista, uma das
observações de Assis foi sobre a protagonista estar acima do peso – numa clara
atitude preconceituosa não apenas com o gênero, mas com a imagem, reduzindo uma
grande atuação a um aspecto físico insignificante.
Após a repercussão vieram pedidos de desculpas dos dois, bem como a decisão da Fundação Joaquim Nabuco de proibir por um ano a exibição de trabalhos e
presença dos dois diretores na instituição. Mais uma vez Cláudio Assis se fez presente em
sua retratação, não apenas assumindo o que lhe é devido, mas invertendo a
discussão ao se colocar como alguém sendo atacado por pessoas caretas – o termo
que define os conservadores também define em grande parte o machismo, ironia
maior não há. Talvez o comportamento destes diretores não tenha sido
conscientemente para atrapalhar o evento, mas é um fato estabelecido que a
provocação reafirmou a velha cartilha do
comportamento brasileiro em que o homem tem que estar à frente – ainda
que pra isso precise atropelar quem estiver passando ou, simplesmente,
calar a mulher que fala. Que horas ela volta? desbancou os eleitos a
concorrer à vaga para o Oscar 2016. Todos os filmes eram de diretores homens.
1 Comentários
Nossa, fiquei com vontade de ver o filme. Na verdade, suas criticas sempre me deixam com vontade de ver os filmes kkkkk... Já tinha ouvido falar super bem desse filme, mas a maneira como você coloca explica as coisas sempre deixa tudo muito mais interessante :)
ResponderExcluirO blog continua maravilhoso como sempre... Eu não comento as vezes porque fico sem saber o que escrever, mas sempre que eu quero uma boa recomendação de filme, venho aqui dar uma espiada.